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‘A autonomia do Banco Central dos EUA está em xeque’

(*) Luiz Cezar Fernandes

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem pressionado o presidente do Banco Central dos EUA, Jerome Powell, por cortes nas taxas de juros do país.

O episódio ecoa, em muitos aspectos, o confronto histórico entre Ronald Reagan, James Baker e Paul Volcker na liderança do Fed nos anos 1980. Tanto Trump quanto Reagan/Baker pressionaram publicamente seus respectivos presidentes do Federal Reserve a reduzir juros em momentos críticos, gerando choques institucionais e questionamentos sobre a autonomia da política monetária.

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Desde o fim do padrão-ouro, a oferta monetária nos EUA vinha crescendo aceleradamente, alimentando pressões inflacionárias. Volcker acreditava ser necessário um choque para “quebrar a espinha dorsal” da inflação. Logo ao assumir a presidência do Fed, Volcker convocou uma reunião extraordinária do FOMC e anunciou, em coletiva de imprensa, um novo regime operacional para a política monetária.

O foco do Banco Central dos EUA

O Fed deixou de focar em metas de taxa de juros de curto prazo e passou a controlar diretamente os estoques de reservas bancárias e os agregados monetários — ou seja, se a demanda por crédito excedesse a oferta planejada de dinheiro, as taxas de juros subiriam automaticamente, sem intervenção do Fed para contê-las.

Consequentemente, como previsto por Volcker, as taxas de juros dispararam a níveis sem precedentes. O Federal Funds Rate, que estava em torno de 11% ao ano, atingiu 20%.

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De fato, a inflação anual ao consumidor, que atingira pico em torno de 13% a 14% em 1979, começou a arrefecer: em 1981, já estava na casa de 10% e continuaria caindo nos anos seguintes.

As medidas adotadas por Paul Volcker para combater a inflação nos Estados Unidos tiveram um custo econômico imediato elevado. O país entrou em recessão em 1980 e mergulhou em uma crise ainda mais profunda entre 1981 e 1982, a mais severa desde a Grande Depressão até então.

As consequências da inflação

Setores altamente dependentes de crédito foram duramente impactados: a construção civil praticamente parou por causa dos juros altos; a indústria automobilística e de bens duráveis sofreu forte retração na demanda; e os agricultores enfrentaram custos financeiros insustentáveis.

As políticas de Volcker provocaram forte controvérsia. Sindicatos, políticos, trabalhadores e agricultores reagiram com grande indignação. Em 1981, um protesto marcante reuniu fazendeiros com tratores bloqueando a entrada do prédio do Fed em Washington. Governadores de Estados mais afetados criticaram o que consideravam uma condução insensível da política monetária.

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No Congresso, Volcker foi convocado para diversas audiências e enfrentou pressão crescente, inclusive pedidos de renúncia por parte de alguns parlamentares. Volcker, contudo, permaneceu firme e defendeu a independência do Federal Reserve com vigor.

Com a posse do presidente Ronald Reagan em 1981, Paul Volcker encontrou inicialmente um aliado improvável. Apesar de ser um político conservador e defensor do crescimento econômico, Reagan reconheceu, naquele momento, que o controle da inflação deveria ser a base de seu programa econômico. Ele expressou publicamente confiança em Volcker e apoiou a continuidade da estratégia austera do Federal Reserve.

Nos bastidores, porém, Volcker advertia que a política fiscal expansionista do governo dificultava a eficácia da política monetária, pois pressionava as taxas de juros para cima, contrabalançando o esforço desinflacionário do Fed.

Durante a Guerra Fria, Ronald Reagan desafiou a União Soviética com o posicionamento de mísseis Pershing na Europa, enfrentando protestos de grupos "pacifistas" de esquerda que defendiam o desarmamento unilateral | Foto: ShutterstockDurante a Guerra Fria, Ronald Reagan desafiou a União Soviética com o posicionamento de mísseis Pershing na Europa, enfrentando protestos de grupos "pacifistas" de esquerda que defendiam o desarmamento unilateral | Foto: Shutterstock
Durante a Guerra Fria, Ronald Reagan desafiou a União Soviética com o posicionamento de mísseis Pershing na Europa, enfrentando protestos de grupos “pacifistas” de esquerda que defendiam o desarmamento unilateral | Foto: Shutterstock

A pressão sobre o Banco Central dos EUA

Esse cenário, no entanto, começou a se deteriorar à medida que os interesses políticos e eleitorais para a reeleição de Reagan se intensificaram. James Baker, então chefe da equipe da Casa Branca e aliado próximo de Reagan, tornou-se o principal agente de pressão sobre o Federal Reserve. Durante a campanha de reeleição, Baker buscou influenciar diretamente as decisões do Fed, defendendo a suspensão de qualquer aperto monetário — um movimento que desrespeitava frontalmente a autonomia da autoridade monetária.

Com a nomeação de Baker para o cargo de Secretário do Tesouro, a interferência institucional se agravou. Baker passou a indicar nomes alinhados ao governo para o Conselho do Fed, comprometendo sua composição técnica e fomentando um ambiente de politização da política monetária. Ele também defendeu explicitamente uma coordenação entre o Tesouro, a Casa Branca e o Federal Reserve — proposta que, na prática, significaria subordinar o Banco Central às prioridades políticas do Executivo.

Trump critica a alta dos juros

O ápice da tensão ocorreu em 24 de fevereiro de 1986, quando quatro dos sete membros do conselho votaram pela redução das taxas de juros — contrariando Volcker, que ficou em minoria pela primeira vez em sua gestão. Ao final da votação, seu comentário lacônico — “Adeus” — sintetizou a crescente erosão da independência do Fed. Embora nunca tenha formalizado sua renúncia, sua autoridade foi totalmente minada, abrindo espaço para que Baker articulasse a escolha de um novo presidente mais alinhado ao governo: Alan Greenspan.

Ambos os momentos representam um choque direto à independência do Fed, uma tradição cuidadosamente preservada desde o Acordo Tesouro-Fed de 1951.

Trump critica os juros elevados, argumentando que eles freiam o crescimento do país e que seria necessário alguém mais alinhado com os planos do governo. Esse comportamento se assemelha fortemente à interferência de James Baker durante o governo Reagan, quando Baker pressionava para segurar a alta dos juros por razões meramente eleitorais.

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O presidente dos EUA está imitando o playbook histórico de pressão política sobre o Fed, mas num momento em que a economia global exige, essencialmente, credibilidade. As consequências são visíveis: volatilidade nos mercados, questionamentos sobre a força do dólar e risco real de ingerência institucional que pode comprometer a luta contra a inflação.

Esse padrão de interferência política no Banco Central repete-se sistematicamente no Brasil. Ao longo de 2023 e 2024, testemunhou-se novamente uma insistente retórica, partindo do Palácio do Planalto, direcionada à autoridade monetária.

A doação deve ser anunciada na próxima semana, durante a visita ao Catar, que faz parte da agenda internacional de Trump | Foto: Isac Nóbrega/PRA doação deve ser anunciada na próxima semana, durante a visita ao Catar, que faz parte da agenda internacional de Trump | Foto: Isac Nóbrega/PR
A postura agressiva de Donald Trump contra Jerome Powell representa um ataque direto à independência do Fed | Foto: Isac Nóbrega/PR

A história deixa evidente que, em momentos em que o ciclo político demanda respostas econômicas rápidas, torna-se frequente o uso de narrativas políticas que buscam enfraquecer instituições técnicas, questionando a autonomia do BC e tentando subordiná-lo às prioridades imediatas do governo.

A postura agressiva de Donald Trump contra Jerome Powell representa um ataque direto à independência do Fed. Trump não apenas questiona decisões técnicas de forma irresponsável, mas utiliza ameaças explícitas para tentar subordinar a política monetária às suas necessidades meramente políticas, gerando perigosas incertezas quanto à credibilidade do Fed. É imperativo defender e fortalecer a autonomia dos bancos centrais para assegurar decisões técnicas e responsáveis, protegendo a economia de manobras políticas oportunistas.


Luiz Cezar Fernandes é um empresário brasileiro, sócio-fundador do Banco Garantia e do Banco Pactual.

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