O que faz um bom livro? Muitos críticos literários tentaram definir de forma clara isso. Por exemplo, Harold Bloom, em O Cânone Ocidental, dizia que um bom livro se estabelece por sua “originalidade estética”: um grande livro deve reformar a linguagem, o estilo ou a estrutura sempre que possível; por sua “influência duradoura”, isto é, deve dialogar com obras do passado e influenciar as futuras; e por “personagens memoráveis” — para o norte-americano, os personagens devem ter complexidade psicológica e histórica. Isso é essencial, diz ele.
Em A Grande Tradição, F. R. Leavis, outro renomado crítico, diz que o “senso moral e erudito” dos textos é primordial: o livro deve nos desafiar intelectualmente e mover em nós um desconforto, curiosidade ou epifania artística; deve ter “precisão e intensidade na escrita”, ou seja, a linguagem deve ser rica, complexa, mas sem excessos e prolixidade; além de “profundidade sentimental”, despertar reações sinceras que vão além do mero entretenimento.
Para Northrop Frye, em Anatomia da Crítica, o tripé de um bom livro se define em “universalidade dos mitos”, “estrutura bem definida” e “criatividade dentro dos gêneros”. No primeiro caso, um bom livro ressoa com arquétipos e mitos humanos, dobrando em nós a realidade simbólica de um outro que todos somos de alguma forma; no segundo, a forma literária deve estar alinhada com o impacto emocional e ser clara para um leitor astuto; e por fim, um bom livro, mesmo dentro de convenções definidas, deve inovar e encontrar significados escondidos.
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Por que essa longa introdução? Para dizer que, com relação aos livros, temos certa clareza e segurança intelectual do que define a grandiosidade literária de uma obra. E, ainda que eu defenda uma espécie de “liberalismo literário”, no qual as celas moralizantes devam estar sempre destrancadas para que os leitores escolham de ótimas a péssimas leituras, sempre segundo suas vontades, não é alienável a ideia de que podemos sim elencar bons e maus livros segundo vias seguras de definição. A questão primordial é: precisamos de especialistas para isso?
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A resposta é direta e, confesso, um tanto quanto confusa: sim e não. Especialistas, como chancela moral, são iguais a bolos de confeitaria, todos são belos por fora, mas alguns são ruins por dentro. Dessa forma, sou favorável sempre a “fatiar” os especialistas e “experimentar” seus conteúdos. Se eles são bons, coesos, sinceros e, principalmente, capazes de abstrair seus preconceitos políticos das suas análises, então o consumirei e adotarei seus padrões — se assim julgar necessário. Por exemplo, eu adoto o padrão dos três críticos citados, cada um com uma fatia: acredito no padrão de “personagens memoráveis” de Bloom, na “universalidade dos mitos” de Frye e na “precisão e intensidade na escrita”, de Leavis. Esses são meus crivos atuais para julgar um bom livro. Claro, não raro adoto os demais crivos desses e de outros críticos, mas, no geral, eis os meus caminhos de análise.
Como um cético filosófico que sempre tento ser, desconfio previamente de especialistas até julgá-los por mim mesmo. Nunca comprei um livro porque carregava o selo de “Nobel de literatura”, por exemplo, ou assisti a um filme somente porque foi vencedor do Oscar. A chancela tem sua importância, mas não me seduz por si mesma, e acredito que não deveria a ninguém.
Muitos especialistas que conheci e estudei — para além da literatura — usam seus jalecos para propagandear visões políticas e religiosas. Lembro-me de um professor que disse mais ou menos assim em uma aula: “Chega de ler norte-americanos e suas propagandas capitalistas em forma de crítica literária, vamos consumir algo mais puro: Georg Lukács”. Simplesmente o crítico literário pró-União Soviética, que entre suas matrizes críticas, defendia a literatura como reflexo da luta de classes, enquanto realizava uma crítica masturbatória ao dito “modernismo burguês”.
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Fato é que, quanto mais lemos e amadurecemos, e, quiçá, consumimos bons críticos literários, iremos naturalmente criar nossos próprios métodos de escolha de bons livros. E ainda que isso soe um tanto quanto prepotente, de fato é o que fazemos sempre em todos os setores de nossas vidas. Examinamos informações, elogios e críticas que recebemos segundo nossos crivos, e ainda que opiniões de terceiros e o senso comum social possam tencionar algumas decisões, no geral somos nós que estabelecemos nossos meios de análise. No fim, devem ficar as nossas impressões e conclusões sobre o que é examinado.
É justamente isso que chamo de amadurecimento: fazer as próprias escolhas, tirar suas próprias conclusões, correr o benéfico risco de analisar segundo o próprio instrumental intelectual. Você não terá sempre um especialista à mão, ninguém contrata um curador constante para definir o sabor do sorvete, a cor dos sapatos e os livros a serem lidos. Assim como na vida, em seu sentido amplo, o leitor deve crescer a fim de assumir seus próprios valores e moldar suas escolhas. E, assim, influenciado aqui e acolá, mas aos poucos ganhando ideias próprias, escolhemos com mais exatidão aquilo que podemos definir como “algo bom”.
O amadurecimento do leitor acontece, quase sempre, seguindo o amadurecimento do indivíduo. Apressá-lo é catastrófico, seja enquanto leitor, seja enquanto homem. Por isso, ao pegar um livro da estante, faço-o, principalmente, seguindo seus interesses, suas percepções. Leia o gênero que lhe apeteça e, antes da crítica, reforce o amor à leitura. Acredite se quiser: não são poucas as pessoas que têm o fetiche da crítica literária, mas não o básico costume de ler.
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E a dica é simples: além das críticas dos especialistas, leia algo porque você quer, segundo seus critérios. Não nego que, por vezes, é bom sim um guia de confiança, um bom crítico literário para direcionar certas obras e até mesmo aprofundá-las; mas não dependa nunca disso para puxar um livro da estante. Leia por indicação crítica, ou porque simplesmente gostou da capa. E, assim, por meio de uma autonomia madura, poderá chegar ao emblemático e não raro lugar no qual, aqueles livros adornados por selos e salivas dos críticos, parecerão apenas palhas velhas, alimento insosso, textos sem complexidade e alma; enquanto que os livros ignorados pela intelligentsia, aqueles pisados e cuspidos pelos homens de opiniões timbradas, se apresentarão como obras profundas, construtoras de pontes morais e estacas espirituais que ferem sua curiosidade, que edificam o espírito. Eu já passei por isso tantas vezes que mal sei contar. A surpresa de encontrar um bom livro esquecido é um dos ápices da satisfação de um leitor dedicado, e, às vezes, é preciso ignorar os especialistas e apostar em seu próprio faro para alcançar esse prazer.