André Marsiglia – 06/05/2025 13h32

Houve um movimento trágico para o Direito brasileiro nos últimos anos que pode ser resumido em uma única declaração do ministro Gilmar Mendes, em evento promovido em Madri, pela OAB, nesta semana: ele disse que o STF agiu de forma ativista em relação ao dia 8 de janeiro, respaldado no “dever de ação” da Constituição Federal.
A fala foi recebida com entusiasmo — talvez até com taças erguidas da nossa “combativa” OAB. O problema é que o tal “dever de ação” não existe. A Constituição não impõe esse tipo de iniciativa messiânica aos tribunais. Ao contrário: o Judiciário é regido pelo princípio da inércia. A Corte deve sempre aguardar ser provocada. Mas o STF decidiu agir por conta própria, se emparceirar com o Executivo e fechar o Congresso, sempre que este não lhe servir de claque, ou de bobo da corte.
Sob essa visão, desde 2019, com o advento dos inquéritos das fake news, o STF vem traçando uma rota solitária: banindo perfis, bloqueando contas bancárias de jornalistas, negando acesso aos autos às defesas, cassando a palavra de parlamentares, acusando antes de julgar, prendendo antes de condenar, censurando antes de refletir.
Onze ministros e suas convicções pessoais se descolaram do país real e conduziram o Brasil por um caminho que não passa mais pelo texto constitucional. A viagem rumo ao poder total, no entanto, é também a derrocada de ministros que pensam assim, pois a Constituição é a única âncora de legitimidade do STF – é nela que os ministros se mantêm ligados ao povo.
Acontece que eles não querem o povo, não se identificam com o povo. Querem é que o povo, o Congresso e o Executivo se identifiquem com eles, com o que acreditam. Viramos escravos de ministros vaidosos e recivilizadores, que, sem perceber, se transformam, pelo próprio vício, em chefes de uma nação deserta, em reis sem coroa.
José Saramago, em seu romance A Jangada de Pedra, conta a história metafórica de que a Península Ibérica, impossibilitada de se identificar com a Europa, passou a navegar sem rumo, em busca de uma identidade própria — encontrando apenas isolamento.
O STF terá o mesmo destino. Ao tentar reinventar o Brasil a partir de suas próprias certezas, separou-se da Constituição, do povo, da legalidade e da razão. Como a jangada de Saramago, soltou-se das amarras que possui conosco e flutua à deriva no mar das suas próprias abstrações.
Em breve, terá apenas poder, e isso é pouco, é nada. Toda ditadura se acaba nesse momento, quando nada mais resta ao tirano senão isolamento e poder. Enquanto a hora não chega, o STF, como uma jangada de pedra, navega solene, imóvel, sozinho.
* Texto originalmente publicado no Poder360.
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André Marsiglia é advogado, professor de Direito Constitucional e especialista em liberdade de expressão. |
* Este texto reflete a opinião do autor e não, necessariamente, a do Pleno.News.
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