Acordo bem cedo todos os dias, por volta das 5:30. Meus afazeres e metas de leitura assim exigem. No entanto, sou casado com uma mulher muito diferente de mim com relação a horários. Se durmo cedo e acordo cedo, ela dorme tarde e acorda tarde. Dito isso, imaginem meu susto quando, às 5 horas da manhã da última quarta-feira, viro para o lado na cama e vejo minha digníssima com um terço na mão em profunda oração; logo após passar o susto, talvez por pensar que ela estava ali velando meu corpo, notei que estava antes com o celular em seu colo, assistindo a uma adoração ao Santíssimo Sacramento conduzido por dois freis no YouTube. Logo em seguida, ela me disse: “Estou aqui desde às 4 horas rezando para comprarmos a nossa casa”. Naquele dia, mais de 500 mil pessoas, às 4 horas da madruga, estavam rezando junto dos padres.
Há muito venho notando um descompasso claro entre o progressismo e o gosto popular. Isso é claro para mim tal como a luz do dia. E uma das áreas onde isso é mais visível, com certeza, é na religião. Fui criado no catolicismo clássico — ou tradicional, como queiram —, daqueles de ir à paróquia com terninho, rezar o terço no fim do dia em frente a uma imagem de Nossa Senhora etc. Fui criado, boa parte da minha infância e juventude, por meus avós — pessoas tradicionais em vários sentidos, entre eles, o religioso. Durante minha adolescência, conheci a Renovação Carismática Católica, uma ala do catolicismo romano voltado aos dito “dons do Espírito Santo”, e lá permaneci até meus 18 anos, a partir de quando, lentamente, regressei ao catolicismo clássico. Tudo isso que descrevi acima são modus, apenas; pois ambos os movimentos estão sob o guarda-chuva do catolicismo romano, sob a tutela espiritual do papa.
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Porém, minha experiência religiosa vai além disso, pois estudei brevemente teologia, na Faculdade da Diocese de São José dos Campos. Depois, fiz minha graduação em filosofia, na Faculdade Católica Dehoniana de Taubaté. Em ambas as instituições, a influência da dita “teologia da libertação” era evidente, o tipo de influência que se capta no ar, talvez se sinta até no paladar.
Por ter atravessado várias vertentes desenvolvidas dentro do catolicismo romano — sendo a teologia da libertação uma subcorrente política não oficial dessa igreja — posso afirmar, por experiência direta, a existência real de uma espécie de bússola natural do povo com relação à ortodoxia da fé e dos costumes. Tanto o catolicismo tradicional quanto a renovação carismática gozam de uma popularidade impressionante, e, arrisco-me a dizer, crescente, dentro do catolicismo romano oficial, enquanto que a teologia da libertação quase sempre foi uma espécie de releitura estranha aos fiéis — excetuando naqueles ambientes politizados pelo marxismo e o socialismo em geral, tal como as comunidades de base desenvolvidas junto ao MST e afins.
Moro em Cachoeira Paulista, cidade na qual está localizada a Comunidade Canção Nova, e onde, anualmente acontece, em julho, um encontro/acampamento denominado Por Hoje Não (PHN), um evento voltado ao público jovem católico. Neste ano, o evento bateu o recorde histórico desde o seu início: cerca de 200 mil pessoas passaram pelo encontro de forma presencial — algumas fontes citam 200 mil, outras 187 mil. Só para termos uma noção da grandiosidade, Cachoeira Paulista, segundo o último censo do IBGE de 2022, tem 31.564 habitantes, isto é, estiveram no evento seis vezes mais pessoas do que há de habitantes na cidade. No PHN costumam ir artistas católicos e padres famosos por sua ortodoxia de fé e ardor evangelista, tais como Frei Gilson — o dito frei das 4 da manhã —, o padre Roger Luís e o padre Paulo Ricardo, expoentes desse movimento crescente que alinha — para alguns de forma estranha — uma vertente moderna do catolicismo, a renovação carismática e suas formas de oração, com os tradicionais e seus apreços pelos dogmas e verdades da fé clássica do catolicismo. É extremamente comum que carismáticos e tradicionalistas católicos — salvo os extremistas que habitam também essas vertentes —, ainda que discordando pontualmente de algumas práticas, habitem e convivam em larga harmonia dentro da Igreja. Isso não acontece com os seguidores da vertente do padre Julio Lancellotti, a teologia da libertação.
Tenho a clara impressão de que a teologia da libertação, na sede de fazer política por meio da fé, apoiando-se numa releitura do marxismo clássico, materialista, retirou do catolicismo a cola mística e o porquê transcendente que dá sentido de ser à religião, e com isso afastou os fiéis de seu redil de forma gradual. Num primeiro instante, a motivação social pode mover espíritos comunitários, mas me parece que uma igreja não é para ser a mistura de benfeitoria pública com grêmio estudantil. Hoje é perceptível a distância entre o dito “populacho”, os fiéis comuns, dos pregadores/políticos das variantes politizadas da Igreja. E isso vale também para os carismáticos e tradicionais. Sempre que alguém se vale da renovação carismática ou das vertentes tradicionais para conseguir apoio político, não tarda para que tal pessoa perca apreço e espaço no círculo íntimo desses grupos católicos.
Por que a teologia da libertação é um fracasso
É comum a percepção, entre amigos especialistas — um cientista da religião, um padre e um sociólogo pastor —, que a teologia da libertação definha sem conseguir se reinventar, dependendo sempre dos incrementos e renovos ideológicos do socialismo contemporâneo, progressista, para buscar atualizações para suas releituras evangélicas e pastorais. Ao mesmo tempo, se existe uma guerra interna por apreço popular no catolicismo brasileiro, é claro que as vertentes tradicionais e carismáticas estão vencendo a enxurradas; enquanto os eventos das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e demais pastorais focadas nos ensinos e práticas da TL (teologia da libertação) derretem ano a ano. O público voltado à ortodoxia católica, com tempero de renovação dos carismáticos, lotam eventos pelo país todo.
Numa análise mais detida, o motivo desse casamento próspero entre tradicionalistas e carismáticos me parece interessante e revelador, enquanto o catolicismo clássico traz as verdades e os ensinamentos que fundamentam uma crença racional, alicerçada em uma tradição sólida, catalisada e reafirmada em mais de 2 mil anos de experiência. A renovação carismática tornou comum novamente a oração piedosa, a fé numa transcendência real e a busca por uma ascese virtuosa em meio a um secularismo opositor. As duas pernas de uma religião eficaz são a rigidez segura de uma doutrina testada e fundamentada, aliada a práticas de fé que dão razão e esperança àqueles que a praticam, sem tais esteios, ou a religião se torna pura meditação e terapia, gnosticismo, ou grupo político.
A tal bússola do populacho, como dizia no começo, deveria ser matéria de real estudo sociológico. É necessário entender o motivo para a notável impopularidade das teses progressistas, tanto na política quanto na religião; isto é: por que há tal afastamento e resistência popular das releituras políticas e demais “upgrades” teológicos e morais da esquerda?
Ouso propor que seja pelo fato de a religião progressista, que hoje atinge não somente o catolicismo por meio da teologia da libertação, mas também vertentes protestantes, em especial, o anglicanismo, ter se tornado um mero apêndice ideológico e nada mais. Perdeu o sentido religioso, o porquê transcendental que, de alguma forma, todos nós procuramos — seja na religião, nos astros, no LSD etc. Tais ideologias político-religiosas, no fundo, desdenham da inteligência do homem comum, acreditam que ele não percebe quando o padre está transformando Jesus em Che Guevara, quando está usando o altar como palanque, quando faz da caridade mera solidariedade, que usa do “pão nosso de cada dia” para defender teses políticas de um governo, quando afoga as virtudes da fé clássica num emaranhado de ativismo ideológico.
Eis o grande erro da sociologia clássica: não considerar a percepção comum dos homens, ignorar Jung e Chesterton no debate acadêmico sério. O erro da religião política, por sua vez, é reduzir a consciência dos indivíduos a um mero fantoche de ocasião. Ora, há mais na inteligência popular do que meros preconceitos e moralismos tolos, como tais especialistas julgam com ar de superioridade. Costumeiramente o povo sabe reconhecer bem um pastor em meio aos embustes, e ainda que não poucos caiam nas perlas desses falsos líderes, podemos dizer tranquilamente que a maioria sente sim o fedor da rapina em batinas e ternos moralmente desajustados. Enquanto os teólogos da libertação insistem em usar da pobreza para pregar a doutrina marxista de exploração e incentivar uma consciência política nos fiéis, na contramão disso o povo grita, ainda que com fome, que “nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (São Mateus 4,4). Isso deixa o bispo e o padre comunista perplexos; o teólogo marxista, sem saber para onde olhar. Se fossem espertos entenderiam que o que o jovem precisa e busca não é inclusão e aceitação somente, ou uma fé menos exigente que se adeque aos seus vícios e dificuldades, mas, antes, um caminho seguro, com linhas traçadas e práticas virtuosas que remendem suas fraquezas de caráter. O Bastião, operário, católico, quando chega em casa, não quer revolução, mas ter paz de espírito, beijar a esposa e os filhos, um jantar quente na panela, rezar seu terço e “coisar” com a mulher antes de dormir.
A religião católica parece-me simples. Ela se adequa com naturalidade à vida na medida que a vemos com um olhar cotidiano. Dizia Gustavo Corção, ensaista católico do século 20, numa releitura das ideias de G. K. Chesterton, que normalmente o homem comum só precisa de três alqueires, uma vaca, uma família e uma paróquia para sentir-se completo. O “progressismo”, seja político ou religioso, necessita antes de uma pregação acadêmica que readeque a mensagem cristã aos moldes ideológicos da esquerda, transformando os textos bíblicos em teses sociológicas distantes do evangelho compreensível pelo homem comum. É, assim, afetado e antipovo até a raiz. E não à toa a esquerda moderna odeia o catolicismo clássico e a renovação carismática, pois ali está um núcleo duro onde ela não consegue penetrar há décadas. É uma oposição ferrenha, que vêm vencendo, crescendo e roubando, como um bom ladrão, os indivíduos que a ideologia “progressista” buscava fisgar com seu anzol militante.
Quem reúne mais pessoas hoje: o padre Paulo Ricardo, em Cachoeira Paulista, ou Lula, em seu reduto político natural, São Bernardo do Campo? Frei Gilson, às 4 horas da manhã, no YouTube, ou uma entrevista exclusiva de Lula ao Fantástico, domingo, em horário nobre? Já pensaram nisso?