Muitos devem ter na mente a imagem de Abel Braga com o rosto vermelho, olhos bem abertos, mascando chiclete e irritado com o time, a arbitragem ou o resultado. Essa provavelmente é a faceta mais conhecida do ex-treinador de 73 anos, mas está longe de ser um retrato fiel do homem que carrega um longo histórico de ajudar jogadores e clubes por onde passou, sempre calmo, pronto para aconselhar e acolher o próximo, enquanto esconde as próprias dores.
Este é o Abel Braga que o fã de esportes terá a chance de ver no novo especial dos canais ESPN e Disney+, ABEL, O GRANDE, uma ideia original de Marcelo Gomes, com fotografia de Evandro Marcel Fontana e Marcelo D’Sants, e trabalho conjunto de edição de Thales Rangel e Igor Machado.
É também uma oportunidade de conhecer os bastidores de triunfos marcantes – como a conquista da CONMEBOL Libertadores sobre o São Paulo e do Mundial de Clubes contra o Barcelona, ambos em 2006 pelo Internacional –, além das duas passagens pelo Flamengo (a segunda, antes da chegada de Jorge Jesus) e a idolatria no Fluminense. Há ainda a história da perda de João Pedro, seu filho caçula, emocionante ouvir.
Tem depoimentos do próprio Abel e de seus familiares, assim como dos jornalistas José Carlos Araújo “Garotinho” e Renata Fan, de jogadores e ex-jogadores, como Zico, Júnior, D’Alessandro, Deco, Rafael Sóbis, Felipe “Maestro”, Zé Mário, Paulo Henrique Ganso, de dirigentes, como Fernando Carvalho, Marco Antonio Eberlin e Rodrigo Caetano, do cantor Raimundo Fagner, entre outros.
O documentário foi dividido em quatro episódios no Disney+, onde já está disponível, e será exibido na grade dos canais ESPN em dois episódios. O primeiro deles neste sábado (13), às 22h (de Brasília). O segundo no dia 20, também às 22h.
A seguir, duas histórias marcantes e sensíveis presentes no documentário.
’PEGUEI ELE PELO PESCOÇO’
O Abel calmo fora do futebol e o Abel explosivo dentro dele parecem coexistir em equilíbrio quase perfeito, mas, em certos momentos de sua trajetória, ele foi tão testado que acabou exagerando.
Um desses episódios ocorreu nos tempos de Vasco, quando atuava como zagueiro ao lado de Orlando Lelé, Geraldo e Marco Antônio – um quarteto conhecido como “a barreira do inferno”.
Sob o comando de Orlando Fantoni, eles ganharam fama nacional em 1977, quando o Vasco foi campeão carioca sofrendo apenas cinco gols e somando 16 partidas consecutivas sem ter a meta vazada. No entanto, não eram maldosos. Apenas encaravam os craques e os jogadores mais talentosos da época, impondo-se na força e na técnica.
“De todos ali, o mais complicado era o Geraldo. O Geraldo não tinha medidas. Aquele time do Vasco era muito bom. Nós jogamos duas finais contra eles. O Vasco ganhou em 1977, e o Flamengo, em 1978. E o Abelão se destacou tanto que foi para a Copa do Mundo [de 1978]”, disse Zico.
“Era a barreira do inferno mesmo [risos]… eles faziam uma linha na defesa e gritavam, mostrando para os adversários, que, dali para trás, era o inferno. Então, passou, levou. Mas era mais intimidação do que violência”, disse o ex-volante Zé Mario, companheiro do quarteto no Vasco.
“A gente tinha de criar situações de pavor. O Orlando não era nada gentil. Eu não era gentil. O Geraldo também não. Entre nós, a gente falava: ‘Vamos criar algo que gere terror’. A gente visualizava da intermediária para trás e dizia ao goleiro: ‘Se os caras passarem daqui, é a linha do inferno’. E o Vasco ficou um turno inteiro do Brasileirão sem sofrer gols”, disse Abel Braga.
Mas houve o tal momento em que Abel exagerou.
“Eu tenho orgulho de nunca ter tirado um jogador de campo, mas tirei um cara lá atrás. Um cara do Bangu. Ele tinha me dado uma porrada, em São Januário. Aí eu falei: ‘Quem dá, esquece… mas tem volta’. No outro ano, jogamos contra, e parece até que foi um lance parecido. Ele pegou a bola, rodou, e eu dei uma pegada forte nele. Ele saiu de maca. Eu nunca fui um cara de agredir e machucar o adversário. Esse eu machuquei porque ele me deixou maluco, e eu falei ‘eu vou te pegar’, revelou Abel.
Outro momento foi já como técnico, mas ainda no início de carreira. Foi quando ele estava no Botafogo, ainda nos anos 80.
“Meu primeiro ano como treinador do Botafogo. Botafogo x América-RJ, no Maracanã. Zero a zero. Daí, o Elói, que foi um ótimo jogador, canhoto, meia, ficou o primeiro tempo todo do lado direito. Começou o segundo tempo, e eu falei: ‘O que você está fazendo aí?’. A gente tinha que ganhar aquele jogo, com 15 minutos, eu tirei ele. Ele saiu, desceu a escada para vestiário e falou: ‘Vai tomar naquele lugar…’. Aquilo subiu e desceu. Quando acabou o jogo, nem esperei o árbitro apitar. Desci para o vestiário procurando ele. Ele estava ajeitando o cabelo. Eu bati nas costas dele, virei ele, peguei ele e falei: ‘Agora você vai mandar na minha cara’. Aí veio alguém que eu não vi e falou: ‘Que isso, Abel?’. Eu meti a mão no cara. Era um amigo de faculdade, e também o empresário do Elói”, disse Abel.
SALVADOR DA MACACA
Abel é idolatrado no Internacional e no Fluminense, dois clubes onde ganhou os principais títulos da carreira e também atingiu marcas expressivas. É o recordista de jogos pela equipe colorada (340, com cinco títulos) e o segundo com mais partidas pelo time tricolor (352, com oito títulos).
No entanto, há um terceiro clube onde Abelão também ocupa um lugar especial: a Ponte Preta.
Foi uma única passagem pela equipe de Campinas, em 2003. O objetivo, à época, parecia modesto para o tamanho que o técnico viria a alcançar: salvar a Ponte do rebaixamento.
Tudo bem que naquela época Abel ainda não era um multicampeão, mas ele topou o desafio e acabou tendo de enfrentar um cenário delicado, dentro e fora de campo.
“Eu fui pra Ponte porque eu falei: ‘Eu preciso entrar no mercado em São Paulo’. Mas havia muitos problemas lá. Eu cheguei a colocar garoto para jogar, garoto que nunca tinha treinado e entrado no Moisés Lucarelli”, disse Abel.
“O Abel dava o treino de manhã, e à tarde já eram outros jogadores porque muitos iam embora, entravam na Justiça pelos atrasos”, disse Marco Antonio Eberlin, hoje presidente da Ponte.
“Eu acredito que ele tirou dinheiro do bolso pra ajudar. Não para pagar salário de jogador, mas para ajudar no dia a dia. Abel tem um coração gigante. Estava atrasado o pagamento daqueles funcionários que ganhavam um salário mínimo e não tinham o que colocar na mesa de casa. Numa reunião entre jogadores e funcionários, todo mundo comprou a ideia de lutar para a Ponte não cair. E eu acredito que o Abel tirou dinheiro do bolso para ajudar”, disse Eberlin, que na época não era presidente.
Leomir Souza, amigo pessoal e profissional, afinal foi seu assistente técnico, confirmou.
“É verdade! A Ponte vivia uma situação muito difícil financeiramente. E ele fez isso na Ponte. Tinha jogador que não tinha dinheiro para pagar a passagem do ônibus”, disse Souza.
O fato é que o empenho em conjunto fez com que a Ponte escapasse do rebaixamento. Na última rodada, venceu o Fortaleza por 2 a 0, no Moisés Lucarelli, e chegou a 50 pontos, se salvando.
Até hoje, existe uma gratidão enorme da torcida com Abel.