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Ainda há juízes em Berlim?

Frederico II foi o último integrante da dinastia Hohenzollern a ostentar o título de Rei da Prússia, entre 1740 e 1786. A fama de líder militar brilhante, responsável por expandir o território prussiano e sua ascendência sobre a Europa lhe valeu o epíteto “O Grande”. Em busca de um refúgio para as atribulações do poder em Berlim, mandou erguer um palácio de verão em Potsdam, a menos de 40 quilômetros da capital do império. Localizado no centro de um parque, no alto de uma colina, o local contava com apenas dez salas principais. Posteriormente o complexo ganharia novas construções, entre as quais vários templos.

Quando considerou que o palácio se tornara modesto para suas necessidades, Frederico, o Grande, decidiu ampliá-lo. Para isso, precisaria avançar no terreno vizinho, no qual se encontrava um velho moinho, de nome Sans-Souci (sem preocupações, em francês), que acabaria batizando também o palácio. Anexar a área não parecia ser um problema, mas o rei esbarrou na obstinação do proprietário.

Frederico, o Grande, retratado pelo pintor alemão Anton Graff | Foto: WImimedia Commons

A história é narrada no conto O Moleiro de Sans-Souci, do escritor francês François Andriex. Em 1745, depois de ter sua proposta de compra recusada pelo moleiro, sob o argumento de que seus pais, a exemplo dele, trabalharam e moraram ali a vida toda, e que seus filhos haveriam de fazer o mesmo, e tendo tentado convencê-lo com as mais ousadas ofertas, o rei perdeu a paciência:

— Você não sabe que eu posso tomá-lo à força, se quiser?

— Sim, Vossa Alteza poderia fazer isso, se não fosse pelo fato de que ainda há juízes em Berlim.

Naquele tempo havia

Em outras versões do episódio, o rei queria ampliar seu jardim, ou simplesmente demolir o moinho para se livrar do barulho das pás. O que importa é que, de fato, ainda havia juízes em Berlim e o moinho seguiu de pé — a versão original não resistiu ao tempo, mas foi reconstruído e hoje é parte de um conjunto considerado patrimônio mundial pela Unesco.

A resposta do moleiro não só preservou sua propriedade como se tornou um dito popular na Europa e dali se espalhou pelo mundo. Foi pronunciada com muita esperança e alguma ironia em 1933, durante a ascensão do nazismo – Hitler chegara ao poder em 30 de janeiro daquele ano – diante dos embates entre os juízes que se mantinham firmes ao cumprimento da lei, à ética e às próprias convicções, e outros que, por medo ou afinidade, tinham se alinhado ao poder.

O tribunal era o mesmo em que os juízes de Berlim haviam provado que o moleiro tinha razão. Quase dois séculos depois, a esperança começava a se esfarelar, não pela ausência de juízes, mas pela presença de um regime que logo cooptaria ou subjugaria as instituições.

Quando não é possível acreditar nos juízes

Episódios de Judiciário submetido ao poder do Estado são comuns na história. O aparelhamento das altas cortes, a substituição arbitrária de seus membros — quando não perseguição, prisão e até morte — ou mesmo o fechamento dos tribunais são fatos registrados em diferentes lugares e momentos. Menos comuns são os casos em que o próprio Judiciário se atribui poder excessivo, atropelando ou se aliando ao Executivo.

A frase “ainda há juízes em Berlim” resume a ideia de que sempre pode haver justiça, em qualquer lugar, em qualquer tempo, para qualquer um e contra qualquer um. A esperança plena na Justiça é um dos pilares de uma sociedade livre e justa. Quando a população deixa de acreditar na única instituição que pode garantir seus direitos, mesmo contrariando os interesses de poderosos, instala-se um misto de perplexidade, desalento e medo. Se já não é possível acreditar na Justiça, não há mais a quem recorrer. O cidadão está por conta própria em um mundo confuso e hostil. Um mundo em que a opinião de um moleiro não vale nada e ainda pode lhe render muito anos de cadeia.

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