Em 8 de agosto de 2024, um dia antes de cair em Vinhedo (SP), a aeronave ATR 72-500 da Voepass apresentou falha no sistema de degelo. Segundo relatos de um ex-funcionário da equipe de manutenção da companhia aérea, obtidos com exclusividade pelo portal g1, o piloto que utilizou a aeronave na véspera do desastre reportou o problema, mas não o registrou no diário de bordo. A omissão permitiu que a aeronave fosse liberada para voar novamente. Um dia depois, ocorreria a tragédia.
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De acordo com o ex-funcionário, o comandante do voo anterior ao acidente, que pousou em Ribeirão Preto (SP) por volta da 1h da madrugada, relatou dificuldades com o sistema de proteção contra formação de gelo — fundamental em condições climáticas severas. A aeronave, no entanto, decolou novamente pouco depois das 5h sem nenhuma verificação técnica mais profunda.
“O sistema de degelo desarmava sozinho”, afirmou a testemunha ao g1. “O piloto informou isso, mas, como não houve anotação no livro, a manutenção não foi acionada. Essa era a cultura da empresa.”
Avião seguiu funcionando
O documento em que se deveria registrar qualquer falha mecânica é o TLB (Technical Log Book), obrigatório segundo a legislação brasileira e internacional. Ainda assim, segundo o relato, a chefia do hangar desconsiderou o alerta verbal por não estar formalizado. A aeronave, identificada como PS-VPB, seguiu com o cronograma de voos: decolou para Guarulhos, depois para Cascavel (PR) e, ao retornar a São Paulo, caiu em Vinhedo. As 62 pessoas a bordo morreram.
A Polícia Federal (PF) já incluiu esse relato na apuração do caso. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) também investigam a conduta da empresa e o histórico de manutenção do avião.


Sistema de degelo foi acionado, mas pode não ter funcionado
Conforme o Instituto Nacional de Criminalística (INC), o botão de degelo foi acionado três vezes durante o voo fatal. A caixa-preta gravou conversas entre os pilotos sobre a presença de gelo nas asas. Para os peritos, é forte a possibilidade de que o sistema não tenha operado corretamente.
“O avião estava em altitude crítica, em ambiente com formação severa de gelo”, explicou ao g1 Carlos Eduardo Palhares Machado, diretor do INC. “O acionamento do sistema não surtiu efeito. Isso pode ter sido determinante para a queda.”
Especialistas em aviação reforçam que falhas no sistema de degelo afetam diretamente a sustentação da aeronave. Em condições adversas, como no dia do acidente, a formação de gelo pode alterar a aerodinâmica e causar perda de controle.
Um avião bimotor de passageiros caiu em uma área residencial no bairro Capela, em Vinhedo (SP), no início da tarde desta sexta-feira, 9.
A Polícia Militar informou que foi acionada às 13h28 para atender à ocorrência na Rua João Edueta, próxima à Rodovia Miguel Melhado de Campos… pic.twitter.com/QQwgWr8qg0
— Revista Oeste (@revistaoeste) August 9, 2024
Manutenções adiadas
Ainda de acordo com a testemunha, havia uma pressão constante para manter os aviões em operação, mesmo diante de falhas. Ele relata que a diretoria evitava que aeronaves ficassem paradas, o que levava a práticas como adiar reparos e adotar soluções temporárias.
“A regra era clara: se não estivesse no livro, não era defeito”, afirmou. “A ordem era manter o avião voando, mesmo com o risco.”
O ex-funcionário também mencionou que, na madrugada anterior à queda, a equipe de manutenção estava desfalcada. Parte dos mecânicos foi deslocada para cuidar de outro avião, o que comprometeu a avaliação da PS-VPB. Segundo ele, a mesma aeronave já havia sido motivo de apreensão entre tripulantes, por causa de falhas recorrentes em despressurização e até um episódio de “tail strike”, quando a cauda toca o solo durante pouso ou decolagem.
A moradora Nathalie Cicari registrou o momento em que um avião bimotor caiu próximo à residência dela, em Vinhedo, no interior de São Paulo.
Segundo informações preliminares, a aeronave saiu de Chapecó (SC) em direção a Guarulhos (SP) e tinha capacidade para 68 passageiros. pic.twitter.com/kVFE8CocI9
— Revista Oeste (@revistaoeste) August 9, 2024
Em busca de responsáveis
A Polícia Federal apura se houve crime na condução da manutenção e se a omissão contribuiu para a tragédia. O delegado Edson Geraldo de Souza, que lidera a investigação, disse ao g1 que o objetivo é identificar os responsáveis pela falha e entender os fatores humanos que levaram ao acidente.
“Sabemos o que causou a queda do ponto de vista técnico”, afirmou o delegado. “Agora, buscamos entender quem teve responsabilidade na cadeia de decisões que levou a isso.”
O relatório preliminar do Cenipa já indicava falhas no sistema de degelo como possível causa. A frase “bastante gelo”, dita pelo copiloto instantes antes da queda, está registrada na caixa-preta e reforça essa hipótese.


Voepass e Anac se manifestam
A Voepass não comentou os pontos específicos levantados pelo ex-funcionário, mas reafirmou que sempre priorizou a segurança e que, em mais de 30 anos de atuação, nunca havia registrado um acidente. Em nota, declarou que prestou apoio integral às famílias das vítimas, colaborou com as investigações e segue comprometida com os processos de apuração e indenização.
A Anac, por sua vez, confirmou que acompanha o caso desde o dia do acidente e que a aeronave estava com a documentação válida para voo. A agência informou que denúncias sobre manutenção são analisadas por meio de auditorias presenciais e remotas, e que sanções serão aplicadas se forem comprovadas infrações.