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Brasil há 147 anos debate gestão de riscos agrícolas sem soluções eficazes contra mudanças climáticas

Este artigo integra uma trilogia dedicada à “novela” do seguro rural no Brasil. Ao longo dela, percorro sua história — sem esgotar o tema — trago lições internacionais e encerro com uma crítica contundente ao modelo de política agrícola. Ressalto que quem ignora a história está condenado a repeti-la. Lembre-se: é nos detalhes que mora o diabo.

1878: a primeira assembleia de agricultores no Recife

Em 1878, o Brasil testemunhou a realização da Assembleia de Agricultores no Recife, considerada a primeira do país. Convocada pela Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco (Saap), a assembleia reuniu produtores rurais para discutir questões como crédito agrícola, assistência técnica e seguro rural. O evento contou com o apoio da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, criada em 28 de julho de 1860 pelo Imperador D. Pedro II, que mais tarde se tornaria o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).

Detalhe: o evento seria no ano anterior, mas faltaram recursos ao ministério. Começamos bem, à brasileira.

1954: criação da Companhia Nacional de Seguro Agrícola (CNSA)

Em 1954, no bojo da lei nº 2.168, de 11 de janeiro, que instituiu normas para o seguro agrário, foi implementada a Companhia Nacional de Seguro Agrícola (CNSA). Nesse mesmo período foi também criado o Fundo de Estabilidade do Seguro Agrícola (Fesa) para dar suporte a eventos de catástrofe climática. A CNSA operou durante a década seguinte, mas enfrentou sucessivos déficits e problemas operacionais, sendo liquidada em 1966.

Detalhe: a CNSA nunca emitiu uma apólice de seguro agrícola.

1965: institucionalização do crédito rural

Em 5 de novembro de 1965, foi sancionada a lei nº 4.829/1965, que instituiu oficialmente o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). Essa lei determinou que o crédito rural seria distribuído e aplicado em conformidade com a política de desenvolvimento da produção rural, com finalidades voltadas ao custeio, investimento e comercialização. Com o SNCR, o crédito rural passou a ser normatizado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e fiscalizado pelo recém-criado Banco Central do Brasil, que definia diretrizes, avaliava recursos e supervisionava as operações — marcando o início de uma política nacional de crédito agrícola.

Detalhe: antes de 1965, o financiamento agrícola estava quase totalmente concentrado no Banco do Brasil, por meio da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (Creai), o que resultava em baixa capilaridade, forte presença estatal e pouca competitividade entre instituições financeiras. O crédito rural já era concedido sem seguro agrícola.

1966: Fundo de Apoio ao Seguro Agrícola (Fasa)

Criado com o decreto-lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, para oferecer suporte financeiro ao seguro rural em situações de catástrofe e eventos extraordinários que pudessem comprometer a estabilidade das operações de seguro agrícola.

Detalhe: inicialmente vinculado ao Ministério da Agricultura e ao IRB, com foco em manter a solvência do seguro rural frente a eventos climáticos extremos. Serviu como primeiro mecanismo de estabilidade, mas tinha recursos limitados e governança restrita, não sendo suficiente para estruturar o mercado, sendo depois substituída pelo FESR.

Década de 1970: expansão e subsídios ao crédito rural

Durante os anos 1970, o crédito rural se expandiu fortemente, baseado em juros reais negativos e amplos subsídios públicos, especialmente por meio de repasses do Tesouro Nacional, com o objetivo de estimular a modernização agrícola e a adoção de novas tecnologias e insumos.

Nesse contexto, o decreto-lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967, instituiu a Cédula Rural, que passou a funcionar como título de crédito e instrumento de garantia nas operações do SNCR — permitindo ao produtor oferecer penhor ou hipoteca de bens rurais e facilitando o acesso ao crédito agrícola em escala nacional.

Detalhe: o modelo priorizou volume e alcance, favorecendo grandes produtores e regiões mais desenvolvidas, o que resultou em concentração de recursos e aumento da dependência do Estado para financiar o setor.

1976: criação do Proagro

Diante da ausência de um mercado de seguros agropecuários, foi criado o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) em 1976. O Proagro foi regulamentado pelo decreto nº 77.120, de 10 de fevereiro de 1976, e tem como objetivo garantir o pagamento das dívidas de crédito rural em caso de perdas causadas por eventos climáticos adversos.

Detalhe: o programa é administrado pelo Banco Central, que atua como segurador e ressegurador — o único Banco Central no mundo a acumular funções de política monetária e gestão de riscos agrícolas.

1995: Primeira Securitização de Dívidas Rurais

Em 1995, foi sancionada a lei nº 9.138, que autorizou a renegociação de dívidas originárias de crédito rural sob condições especiais. Essa medida permitiu a securitização das dívidas rurais, facilitando o alongamento dos prazos de pagamento e a redução das taxas de juros, com o objetivo de aliviar a pressão financeira sobre os produtores rurais.

Detalhe: desde os anos 1980 e início dos 1990, houve um acúmulo significativo de inadimplência no crédito rural — resultado de políticas de crédito com forte subsídio, crises macroeconômicas e baixa rentabilidade em vários segmentos. Esse estoque de dívidas pressionou bancos (especialmente o Banco do Brasil) e tornou urgente uma solução para “limpar” balanços e evitar colapso do crédito rural.

2001: FESR – Fundo de Estabilidade do Seguro Rural (FESR)

Com o objetivo de ampliar e modernizar o conceito do Fasa, a lei nº 10.226, de 2001, criou o FESR como fundo vinculado ao IRB-Brasil Re, oferecendo cobertura financeira mais estruturada para riscos climáticos e estabilização do mercado de seguro rural. Mantém recursos para cobrir sinistros extraordinários. Continua ativo.

Detalhe: um episódio de 2004 marcou a história ao acesso ao fundo. A Companhia de Seguros do Estado de São Paulo (Cosesp) enfrentou dificuldades para acessar os recursos do FESR após eventos climáticos adversos que afetaram a produção de milho safrinha no Paraná, resultando em elevados índices de sinistralidade. Como resposta, o governo federal editou a medida provisória nº 512, de 29 de junho de 2004, que autorizou a liberação de recursos adicionais para o FESR, visando assegurar o cumprimento das obrigações com os produtores afetados. Esse episódio evidenciou a necessidade de aprimorar a estrutura e a gestão do FESR. A Cosesp foi liquidada em 2007, mas em meados de 2005, antes do PSR, já tinha parado de operar com o seguro agrícola.

2002: Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural do Estado de São Paulo

Vinculado ao Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista (Feap), foi instituído pela lei estadual nº 11.244, sancionada em 21 de outubro de 2002. Essa legislação autorizou o governo do estado a conceder subvenção econômica ao prêmio do seguro rural, visando facilitar o acesso dos produtores paulistas a seguros agrícolas e, assim, mitigar os riscos decorrentes de eventos climáticos adversos. Em 2024 o programa aplicou R$ 100 milhões.

Detalhe: nos anos seguintes, a partir de 2011, cinco municípios do circuito de fruticultura de São Paulo implementaram programas complementares municipais de subvenção ao prêmio do seguro rural: Itatiba, Jundiaí, Louveira, Itupeva e Mogi das Cruzes.

2004: criação do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR)

Em 2004, foi sancionada a lei nº 10.823, que instituiu o Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR). O PSR visa tornar o seguro rural mais acessível aos produtores, por meio da subvenção econômica ao prêmio do seguro. Apesar dos esforços, o programa enfrenta instabilidade orçamentária e falta de estrutura sólida no mercado de seguros agropecuários.

Detalhe: o PSR é classificado como despesa discricionária, ou seja, seus recursos não são obrigatórios — diferentemente de programas como Proagro ou Pronaf — e, portanto, está sujeito a bloqueios ou contingenciamentos no orçamento. Esse caráter discricionário e a competição interna no ministério pela dotação orçamentária tornam o PSR bastante imprevisível, pois em momentos de restrição fiscal ele é um dos primeiros a sofrer cortes.

2008: renegociação de dívidas e falta de prioridade do seguro rural 1

Entre os anos de 2004 a 2008, o setor agropecuário enfrentou acúmulo expressivo de endividamento devido a perdas climáticas severas e recorrentes. Essa situação evidenciou a insuficiência de mecanismos de seguro rural e de gestão de riscos. Em resposta, foi sancionada a lei nº 11.775, de 2008, criando novos instrumentos de renegociação de dívidas e alongamento de prazos para produtores afetados, sem a necessidade de contratarem seguros.

Detalhe: até as cooperativas sentiram a crise. O FAT Giro Rural foi implementado pelo Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat). Essa linha de crédito foi criada com o objetivo de fornecer capital de giro para cooperativas agropecuárias, visando à recuperação financeira do setor.

2009: PSR do Paraná

O Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) do Paraná foi instituído pela lei estadual nº 16.166, de 7 de julho de 2009. Gerido pela Secretaria da Agricultura e do Abastecimento (Seab), o programa visa ampliar o acesso dos produtores rurais ao seguro agrícola.

Detalhe: apesar da iniciativa importante, o programa não rompeu até hoje a barreira de um orçamento mais robusto. Estados como Santa Catarina, Minas Gerais, Goiás, Bahia e Rio Grande do Sul podem em adotar programas similares ao do Paraná e de São Paulo.

2010: Fundo de Catástrofe

Foi sancionada a lei complementar nº 137, que estabeleceu a criação de um fundo complementar para o seguro rural. Previa até R$ 4 bilhões de recursos ao fundo.

Detalhe: essa lei nunca foi regulamentada, deixando o fundo sem operacionalização efetiva.

2011 a 2023: oscilações no setor agrícola brasileiro

Entre 2011 e 2023, o setor agrícola brasileiro alternou safras abundantes com desafios climáticos severos, como as secas de 2015, 2018 e a histórica de 2021/2022, que comprometeram a produção, especialmente de soja, e aumentaram a inadimplência. A estiagem de 2021/2022 gerou perdas bilionárias e elevada sinistralidade no seguro rural, com indenizações superiores a R$ 7 bilhões em 2021 e mais de R$ 10 bilhões em 2022. O impacto financeiro levou algumas seguradoras a saírem do mercado e resseguradoras a enfrentarem restrições de capacidade.

Detalhe: não havia fundo específico para eventos extremos.

2024: projeto de lei para modernizar o seguro rural

A senadora Tereza Cristina apresentou o projeto de lei nº 2.951/2024, que propõe a criação de um fundo privado de seguro rural, com recursos públicos e privados, para cobrir riscos extraordinários, além de aprimorar a subvenção econômica e expandir a cobertura do seguro para mais culturas e regiões.

Detalhe: o projeto pode ser a chave de virada do seguro rural. Ainda está tramitando no Congresso Nacional.

    2025: renegociação de dívidas e falta de prioridade do seguro rural 2 (a história se
    repete)

    Em 2025, o governo anunciou um novo pacote de renegociação de dívidas rurais, mobilizando R$ 12 bilhões para auxiliar produtores afetados por eventos climáticos adversos. No entanto, essa medida não exige contrapartidas relacionadas ao seguro rural, perpetuando o ciclo de endividamento sem oferecer proteção eficaz.

    Além disso, a área segurada pelo PSR permanece muito abaixo de 10% da área agrícola nacional, evidenciando a falta de uma política consistente e estruturada para a gestão de riscos no setor agrícola.

    Detalhe: o seguro rural custou R$ 12 bilhões ao governo nos últimos 20 anos, e a renegociação de 2025 terá o mesmo valor.

    Esse será o tema do terceiro e último artigo da trilogia, enquanto o segundo aborda a experiência internacional.

    *Pedro Loyola é coordenador executivo do Observatório do Seguro Rural da FGV Agro.


    Canal Rural e a FGV Agro não se responsabilizam pelas opiniões e conceitos emitidos nos textos desta sessão, sendo os conteúdos de inteira responsabilidade de seu autor. O Canal Rural se reserva o direito de fazer ajustes no texto para adequação às normas de publicação.

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