Por mais de quatro décadas, Gloria Perez construiu uma carreira marcada por enredos ousados, que misturaram melodrama, causas sociais e a introdução de novas culturas ao público brasileiro. Hoje, aos 76 anos, a autora de sucessos como O Clone, América e Caminho das Índias afirma que parte dessas histórias não chegaria ao ar no cenário atual.
A razão, segundo Gloria Perez, está na censura moral que se espalhou pela sociedade e que, em sua visão, supera até o controle exercido durante o regime militar. “Na época, você tinha uma censura comandada pela dona Solange Hernandes”, disse a autora ao jornal Folha de S.Paulo, referindo-se à chefe da Divisão de Censura de Diversões Públicas do regime militar. “Era ela quem mandava cortar as coisas. Só que agora temos uma multiplicidade enorme de ‘Solanges’. Nas redes sociais, com raras exceções, cada pessoa é uma Solange diferente, julgando o outro e tentando cassar a palavra alheia. Não era assim. Antes, você tinha uma censura. Agora, a censura está espalhada na sociedade. É muito pior.”
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Segundo Gloria Perez, a busca por não desagradar transformou a teledramaturgia em produto inofensivo e sem conflito — justamente o elemento que considera a espinha dorsal de uma novela. “Sempre achei que o politicamente correto engessa, reduz e elimina a possibilidade do conflito”, observou. “Ao fazer isso, o politicamente correto amordaça e empobrece o autor. Só que novela é conflito. O que você procura como criador de histórias é compreender e mostrar os sentimentos humanos em relação a um determinado assunto. Mas, hoje em dia, com essa coisa de não poder ofender um grupo, não poder ofender outro, você acaba fazendo uma novela sem conflito.”
Por que Gloria Perez deixou a Globo
A autora deixou a TV Globo neste ano, depois de a emissora vetar sua próxima trama, Rosa dos Ventos, que trataria de aborto e política. “Decidi pôr um ponto final, porque meu contrato acabaria quando terminasse esta novela que foi barrada”, contou. “Decidiram adiar a novela por causa do aborto. Aí, falei: ‘Gente, se tem uma pessoa que sabe tocar com delicadeza nesse tipo de tema, sou eu. A minha história toda mostra isso’. Mas, aí, veio o medo de desagradar algumas áreas. A minha assinatura é lidar com temas delicados e trazer o público para a discussão. Se não puder fazer isso, acabo.”
Ela também responsabilizou a chamada cultura woke pela crise criativa da TV aberta. “Introduziu um cerceamento à imaginação”, afirmnou. “A opção de não desagradar, de não tocar em temas sensíveis, de transformar conflitos humanos em pautas, acabou por encerrar a dramaturgia numa espécie de fórmula, retirando dela a capacidade de provocar. A cultura woke foi arrasadora para a dramaturgia.”
Para Gloria Perez, o resultado é uma produção sem ousadia e com pouca relevância social, distante da função que as novelas já tiveram como espelho e provocação ao país. “Existem talentos, mas foram engessados”, disse. “Ou tenho liberdade para voar, ou não tenho liberdade nenhuma.”

