É altamente improvável que qualquer torcedor do São Paulo, não importa a idade, jamais tenha visto este gol ao menos uma vez na vida. O cronômetro marcava 14 minutos e seis segundos quando Cicinho cortou para dentro. Instantes depois, a bola já estava nas redes de Marcos, que voou até o limite, mas não conseguiu sequer resvalar na finalização de perna ruim (?) do lateral-direito.
O talvez lance mais icônico do tricampeonato são-paulino da CONMEBOL Libertadores, que completa 20 anos em 2025, passou por gerações de torcedores. Não viu? Bom, não tem problema. O autor daquela pintura contra o Palmeiras certamente já assistiu o suficiente para compensar.
“Já perdi as contas. Até porque eu não fazia muitos gols. Um gol bonito daquele lá tem que ser visto e revisto muitas vezes”, brincou Cicinho, duas décadas depois, em entrevista ao documentário “Doutrinadores“, realizado pela ESPN e disponível no Disney+, com a história e os bastidores do São Paulo tricampeão da América em 2005. A obra conta com imagens da época, acervos pessoais, causos inéditos e a participação de alguns dos principais personagens daquele time, como o antigo camisa 2.
“Coloco para o meu filho ver, para minhas filhas, para os meus amigos. E assim, quando estou quase esquecendo dele, aí surge um clássico e os torcedores postam. Então, eu reposto. Pode ter certeza que mais de mil vezes eu já vi aquele gol”.
Cicinho viveu em 2005 a temporada mais mágica da carreira. Em seu segundo ano de São Paulo, tornou-se uma figura fundamental para o time conquistar não só a Libertadores, mas também o Campeonato Paulista, meses depois, e ainda o Mundial de Clubes, no fim do ano. Foram dez gols e 23 assistências, números que renderam uma transferência para o poderoso Real Madrid no ano seguinte.
Só que, antes de ir à Europa, o lateral deixou um legado no Brasil. Azar do Palmeiras, que parecia destinado a sofrer nos pés de Cicinho. Em 2004, na temporada de estreia no Morumbi, foram dois gols. O terceiro foi essa pintura de canhota, em lance que o ex-jogador garante que era treinado, mas que pegou até mesmo Rogério Ceni de surpresa.
“Eu costumo falar que foi pura sorte. Mas, assim, uma sorte que era treinada, porque eu me lembro que após os treinamentos, eu pegava a bola, ficava fazendo cruzamento também. E, às vezes, eu pegava a bola, levava para o meio e chutava com a perna esquerda. Então, eu chutei porque eu tinha confiança”, disse o ídolo tricolor.
“Mas entrar naquele lugar, no Marcão, contra o Palmeiras, e, assim como o Rogério Ceni falou no vestiário ao final da partida: ‘Ganhar de 1 a 0, com gol de esquerda do Cicinho, no Parque Antártica, dificilmente a gente não seria campeão'”.
Se Rogério ficou atônito, Marcos também, mas com uma leve dose de irritação.
“Ele pegou e falou para quando eu fosse jogar contra o Palmeiras, para pedir para gravarem o jogo para que eu pudesse apresentar o DVD. Era a época do DVD, que você entregava para os empresários. Ele falou: ‘Você vai estar empregado em qualquer time do mundo, porque vai ter sorte contra o Palmeiras lá longe'”, contou Cicinho, que voltaria a castigar o goleiro palmeirense uma semana depois.
Após vitória no antigo Palestra Itália, o São Paulo foi ao Morumbi com a vantagem de poder empatar para avançar às quartas de final. Segurou o 0 a 0 com um jogador a menos até a reta final da partida, quando, após pênalti cometido por Correa, Rogério Ceni abriu o placar. A vitória, porém, só foi garantida mesmo em mais um lance inesperado de Cicinho.
Em uma falta de muito longe, quase da linha lateral, o camisa 2 aproveitou-se da falta de barreira e arriscou direto, agora com o pé direito. Ela entrou no canto esquerdo de Marcos, que, sem nada a fazer, apenas reclamou com os companheiros que não evitaram mais um lance como esse. Depois, de cabeça mais fria, reconheceu o mérito do rival.
“O Marcos deu uma luva para o meu pai. E uma história tão interessante. No primeiro clássico que eu disputei contra o Palmeiras, ele torceu para o Palmeiras ganhar, mas eu jogar bem. E quando cheguei em casa, conversei com ele: ‘Olha, pai, eu entendo, mas a gente precisa comer. Então, se eu ganhar, a gente ganha um pouquinho mais de dinheiro’. Aí ele caiu na real e começou a torcer para o São Paulo”.
Apenas uma das histórias de um jogador que chegou sem fama ao São Paulo, após briga na Justiça contra o Atlético-MG. Um gesto da antiga diretoria o marcou positivamente.
“O Juvenal Juvêncio [diretor] e o Marcelo Portugal Gouvêa [presidente] falaram assim que assinei o contrato: ‘Agora, o Natal vai ser bom’. Aí eu falei: “Não. Poderia ser gordo se eu tivesse o salário do Atlético-MG, mas eu entrei na Justiça porque eles não pagavam”. Ele então (Juvenal) perguntou: ‘Mas você não tem nada?’. Eu falei: ‘Não. A casa dos meus pais está reformando. Eu quase não tenho carro para andar'”, lembrou Cicinho.
“Aí ele foi em uma sala, fez o cheque de R$ 100 mil e me entregou. Eu dobrei, coloquei no bolso e liguei para o meu pai. ‘Pode comprar peru, melancia, uva e tudo’. Então o Natal foi bem gordo”.
Não tanto quanto o 2005 do São Paulo.