O cara mais agressivo dessa parada. Pelo menos é assim que se autoentitula Jean “Lord” Silva, que luta neste sábado (13), no UFC Noche. Quem vê o estilo violento de luta do brasileiro, ou suas ações midiáticas fora dos octógonos, pode imaginar que seu parceiro de treino na “Fighting Nerds” é um homem tão sanguinário quanto. Mas quem pensa assim não poderia estar mais enganado.
Próximo oponente de Diego Lopes e cada vez mais perto de uma disputa de cinturão, Jean dispõe de muito material humano na equipe brasileira que foi eleita a melhor do ano em 2024. Mauricio Ruffy, por exemplo, também é atleta do UFC e possui peso similar. Fora isso, Pablo Sucupira e Flávio Álvaro são técnicos muito competentes. Mesmo assim, sua escolha é a de um nome muito pouco conhecido pelo público.
Quem entra na Combat Club, CT da Fighting Nerds no Brasil, localizado em São Paulo, não tem dificuldades em encontrar Jean Silva no tatame. Basta procurar os barulhos de golpes que parecem tiros ou o seu já tradicional latido. E quem seguir esses barulhos, vai encontrar uma figura curiosa, pelo menos para quem é de fora, do outro lado dos socos do “Lord”: sua esposa Carolina de Castro.
Mesmo quando Jean está em treinamentos coletivos, é comum ver Carol nos arredores do tatame, conversando com técnicos e incentivando o marido. Mas, o que chama muita atenção no mundo do MMA, geralmente guiado e centrado nos treinadores homens, é ver ela absorvendo os golpes fortíssimos do “Lord” em treinos de manopla.
Essa combinação, entretanto, pode ser surpresa ou estranha para quaisquer pessoas, menos para o casal. Jean demonstra um apego muito grande a sua esposa, e Carol transmite uma naturalidade ainda maior ao afiar as técnicas de um lutador do UFC, a maior companhia de MMA do mundo.
Essa história, como é possível imaginar, não é nada nova, e nem começou em São Paulo, inclusive. Mas a calma de Carol, a “racional” da dupla, e o caos de Jean, o mais emotivo, formam duas metades que se completam e formam um dos grandes ativos do MMA brasileiro: o “Fighting Couple”.
Conhecendo o “Fighting Couple”
Jean Silva, de 28 anos, tem 1,70m e atualmente é atleta de MMA na categoria dos pesos penas do UFC. Sem dúvidas, chama muita atenção pelo o que faz dentro do octógono, colecionando nocautes e enfileirando quatro vitórias seguidas na promoção. Mas quem acompanha de perto o dia a dia do lutador em seu canal, também se vê entretido pela personalidade do catarinense.
Umas das marcas registradas do brasileiro que, apesar do apelido, não age exatamente como um “Lord” no octógono, é o seu latido, que usa principalmente para comemorar as vitórias no octógono ou mesmo para interagir com os fãs, outra coisa que ele gosta de fazer. Quem interage com ele a nível pessoal, entretanto, pode confirmar que nada disso é uma personalidade inventada para as câmeras.
“Você está atrasado”, diz ele ao me receber na Combat Club, mesmo que eu tenha chegado antes do horário combinado para nossa pauta. Carol, prontamente, me defende lembrando que o horário foi combinado. Agitado, ele circula o octógono nos fundos da academia e reclama de fome antes de descer e ir tomar banho para a entrevista.
Quem me recebe no meio-tempo é Carol, também em roupas de treino, e com um ânimo muito mais tranquilo que seu marido. Conversamos sobre amenidades enquanto preparo todo o equipamento da entrevista. Ela é perceptivelmente mais calma que Jean, mas também esbanja carisma.
Carolina de Castro tem 34 anos, mais de dez deles foram vividos nas artes marciais. Também natural de Santa Catarina, é perceptível o quanto sua personalidade, de início, parece oposta à de Jean. E isso até é reconhecido pelo casal.
“Eu acho que é essa diferença que mantém a gente, porque enquanto ele é muita emoção, eu sou muita razão”, comenta Carol. “Os opostos se atraem” complementa Jean sem titubear, falando entre as palavras da esposa em um timing que já parece muito aperfeiçoado pelos anos.
“Ela é muito ogra”, brinca Jean, em referência ao jeito mais racional da esposa. “Não tem emoção para nada na vida, nem quando viu o Belo [cantor] ela chorou”, diz ele relembrando os momentos icônicos do casal.
Entretanto, apesar da admissão deles próprios, quem observa o “Casal da Luta” vê que o entrosamento deles não fica só dentro do octógono. Os dois são carismáticos, fazem questão de conversar comigo e, no almoço, me revelam bastidores do mundo da luta e da equipe, e mesmo da vida deles, com muita naturalidade.
“E eu sou uma esposa muito boa para ele, porque eu nunca tento parar ele”, reconhece Carol. “Me manter calmo é diferente de gastar energia. Se eu guardar minha energia, no outro dia vai ser pior”, reconhece Jean.
“Porque senão eu fico assistindo luta 24 horas da minha vida e quero estar treinando em casa. Às vezes ela está limpando a casa e eu falo: olha só, eu pensei nisso, pensei naquilo, vamos trabalhar isso, vamos trabalhar aquilo”, continua Jean.
“Eu gosto de ser agitado. Inclusive estou louco para arrumar minhas coisas e treinar de novo”, revela ele, depois de um longo dia de muitas horas de entrevista.
É nítido que é essa intimidade e conexão que Carol e Jean levam para os octógonos e tatames durante os treinos. Um timing muito apurado em cada soco, sequência ou possível golpe de nocaute. Algo que, assim como as técnicas das artes marciais, foi construído ao longo de muitos anos, por conversas, tentativa e erro.
E não podia ser diferente, já que foi literalmente dentro dos tatames e da academia que Jean, à época ainda com cabelo descolorido, e Carol, que tinha um trabalho fora do mundo das lutas, se conheceram e, eventualmente, começaram a namorar.
Entre treinos e beijos
Entre restaurantes, livrarias, festas e parques, uma academia de Muay Thai não é exatamente o primeiro lugar que vem à mente se quer se começar uma história de amor. Uma vida no esporte, tudo bem, mas um romance?
Mesmo assim, foi no tatame que Jean, ainda de cabelo descolorido, e Carol, buscando uma vida mais ativa, se conheceram. O relacionamento não foi instantâneo, mas também não chegou a demorar.
Com cerca de 20 anos, Carol entrou no mundo das lutas puramente para melhorar a qualidade de vida, sem quaisquer pretensões profissionais. Os objetivos e as perspectivas logo mudaram, entretanto, já que a paixão dela, inicialmente apenas pelo esporte, à levou muito mais longe do que imaginava.
“O meu professor trazia muito o Muay Thai da Tailândia e trazia muitos instrutores de lá para dar curso específico de manopla. E eu acabei adorando essa parte de ser treinadora. E aí eu virei instrutora de Muay Thai pelo meu mestre Nelson Sato”, relembra Carol.
Nesse meio tempo, Jean não só já praticava artes marciais, como já integrava a mesmíssima equipe que Carol, porém em outra unidade. Frequentando ambientes e eventos similares, entretanto, seus caminhos nunca se cruzaram. Isso até o “Lord” precisar de novos parceiros de treino.
“Cara, eu cheguei lá por conta do meu professor, o Ricardo Dragão. Eu ia fazer uma luta muito importante na época, que era o cinturão para um torneio municipal. Aí precisava de material humano. Daí a gente foi se conhecer mesmo, acho que depois de um mês, por aí, treinando lá”, relembra Jean.
“Ele olhava para mim e falava assim: Guria, tu vai casar comigo, vai ser minha noiva. Falei: você é maluco, nem te conheço”, relembra Carol.
Por mais que a previsão de Jean pudesse parecer ousada, e direta, ela aos poucos se concretizou. O objetivo em comum do par de amigos, de chegar em um alto patamar de sucesso, os transformou em um casal. Mas o romance mesmo só foi consolidado com o que Carol era certificada a fazer: um treino de manopla.
Um treino a dois
Existem poucas coisas mais usuais e comuns no mundo da luta do que um famoso treino de manopla. Um treinador veste uma luva de espuma, que serve como um verdadeiro alvo, e guia seu lutador em qual sequência de golpes deve ser executada, em qual ordem, com qual ritmo, e assim por diante.
É um dos treinos mais populares entre quaisquer lutadores de esportes de striking, como o próprio MMA, além de boxe e Muay Thai, por exemplo. A grande vantagem é que as manoplas permitem uma simulação bastante fiel do ambiente da luta sem necessariamente desferirem dano ao atleta, algo que pode acontecer nos sparrings, por exemplo.
Uma coisa nada comum, entretanto, é uma mulher ser manopleira de um homem. As lutadoras do UFC, por exemplo, quase sempre treinam com técnicos masculinos.
Agora, ver “o cara mais agressivo dessa parada” lançando socos, chutes e cotoveladas em direção não só de uma mulher, como de sua esposa, gera estranhamento de quem não é do mundo da luta e mesmo dos que frequentam esse espaço.
Até por isso, Jean e Carol já foram alvos de muitos comentários, inclusive questionando se era prudente um lutador do UFC treinar com uma mulher. A dupla, entretanto, não parece se preocupar com isso.
“Eu sabia que quando chegasse aqui ia haver isso. E havia os, talvez haters, talvez nem haters, talvez as pessoas querendo o meu bem que acham que é melhor a gente treinar com outro cara. Mas pode botar qualquer um, pode pegar qualquer treinador, que ninguém vai segurar para mim igual a Carol”, diz Jean, com bastante confiança.
Alinhando o treino de manoplas desde Florianópolis, uma das grandes vantagens de Carol como treinadora de Jean é que ela já entende bem as particularidades do marido e, portanto, sabe montar um treino que englobe todas as necessidades dele como atleta.
“Da minha parte, são dias bem diferentes, nunca é a mesma coisa. Tem dias que eu preciso extravasar, tem dia que eu preciso bater manopla chorando. Tem dia que eu não acordei bem e aí eu preciso bater uma manopla com quem vai me entender, com quem não vai me julgar. Já teve vezes de eu bater manopla com a Carol 20 minutos sem parar, sem round, sem nada”, explica Jean.
“Ele não lembra, mas já foi uma hora”, aponta Carol, como quem conta um segredo em uma conversa de bar.
E não pense que por treinar por uma hora com sua esposa, “o cara mais agressivo dessa parada” alivie na força com sua esposa. Novamente, a dupla deixa bastante claro que se enxergam como iguais, e, portanto, Jean treina com a explosão e a violência de sempre.
“Por tudo que é mais sagrado, eu juro que eu tento furar a manopla. A minha mão vai na cara dela, eu jogo todos os meus golpes na cabeça dela. Se ela não puxar direito, ela vai ser nocauteada”, diz Jean de forma bastante honesta.
Do lado de Carol, ela já parece estar bastante acostumada com a rotina de treinadora de manopla. Bastante honesta, ela confessa que também sente dor com os golpes recebidos nas mãos, mas que até por isso faz uma preparação muito específica para acompanhar Jean.
“Eu sinto muita dor. Tanto que depois, geralmente dos treinos de camp, eu sempre faço fisioterapia, faço liberação nos ombros. Eu não posso parar a preparação física. Eu também faço todo o acompanhamento por fora para poder dar conta hoje do meu trabalho. E eu gosto desse trabalho”, explica Carol.
Mas toda essa dor certamente fica mais fácil de ser suportada quando se pensa no quanto o treino de manopla representa a trajetória dos dois, de meros colegas de academia, até parceiros de trabalho na maior companhia de MMA do mundo.
A manopla mais famosa do mundo
“A gente fazia muita manopla antigamente para lutar em evento da cidade, em um evento pequeno”, relembra Carol, pensando no começo do casal ainda em Florianópolis.
E o mundo da luta é um dos mais cruéis que existem dentro dos esportes. Não é incomum que várias dessas duplas de treinadores e atletas nunca saia dos eventos locais de pequeno porte. Uma lesão séria em um esporte tão violento e pouco lucrativo pode mudar tudo. No caso de Jean e Carol isso também não poderia deixar de ser uma questão.
Um curso de bombeiro. Foi a ideia que Carol teve para uma rede de segurança em torno de Jean enquanto ele praticava um esporte que, no início, pode ser pouquíssimo rentável. Entretanto, mesmo nessa época, um brilho diferente já cercava o casal.
“Então teve um dia que a gente sentou para conversar e aí ela veio com a ideia de fazer o curso de bombeiro. E eu, por uns trinta segundos, fiquei quieto e me imaginei. Mas eu levantei e falei: Ah, nem lascando que eu vou fazer isso. Eu vou quebrar todo mundo, vou ser campeão do mundo e a gente vai ficar bem”, diz Jean.
E, por mais maluco que pudesse soar, Jean estava certo, pelo menos em parte. Ele pode ainda não ser campeão do mundo, mas de fato já quebrou muita gente, só no UFC ele tem uma sequência de 5 vitórias pela via rápida. E agora, Carol reconhece a grandeza da jornada.
“Então tu imagina o quanto hoje é gratificante puxar uma manopla, fazer um treino pra gente ir para o melhor evento do mundo. A gente saiu no instagram do Dana. Essa manopla chegou longe, chegou em Las Vegas”, brinca Carol.
E de fato não foi só Jean, com suas lutas insanas, que chamou a atenção do chefão do UFC. Após a vitória do “Lord” sobre o Bryce Mitchell no UFC 314, o brasileiro pediria para que Dana White fosse padrinho de casamento dele e da Carol, mas com uma condição bastante peculiar: pagar o show do Belo no evento.
E o mandatário, sem titubear muito, concordou. Agora, Jean e Carol farão duas cerimônias, uma em Las Vegas, com Dana e os amigos americanos do casal, e outra em Florianópolis, com a família e os conhecidos do Brasil.
Mais um sonho, portanto, se realizava para o casal. Mas, depois de sair de Florianópolis, ir treinar na melhor academia do mundo em 2024, chegar no UFC e ter Dana White como padrinho, só faltava uma peça para finalizar a história: conhecer a atração do casamento dos dois, o cantor Belo.
Não lutei, não resisti
“Acho que o Belo é uma representação de que tudo é possível”. É assim que Carol abre a história de uma das madrugadas mais insanas do casal. “Acreditem nos seus sonhos, porque tudo é capaz nessa vida”, complementa.
E foi justamente os sonhos de Carol que eventualmente os levaram para o palco de um dos maiores cantores de pagode do país. Nove anos atrás, muito antes do Jean sequer estar perto de entrar no UFC, o casal já era bastante claro quanto aos seus objetivos de vida.
“Meu sonho sempre foi casar na igreja, sempre”, explica Jean. “Eu falava assim pra ele: Eu só vou casar na igreja se o Belo cantar, então vamos ter que esperar entrar no UFC, isso a gente não tinha nem perspectiva”, complementa Carol.
Com nove anos passados, pode-se dizer que ambos realizaram seus sonhos. Jean terá seu casamento na igreja, com Dana White como padrinho. E Carol terá sua atração tão desejada no matrimônio.
Entretanto, se eles já conheciam Dana há algum tempo, quando ele aceitou ser padrinho, o encontro com o belo também não ficou para o dia do casamento, e sim para uma madrugada aleatória em São Paulo.
Em um dia qualquer de semana, às 20h40, Jean, já em casa ao lado de Carol, recebe uma ligação de seu empresário. O Belo queria conhecê-los, e levá-los a um show. Parecia mais um sonho realizado, como qualquer outro. Mas ele ainda guardaria uma surpresa para os dois.
“E aí ele falou: Cara, só que é três horas da manhã! E eu pensei: caramba, três horas da manhã. Daí ele disse: só que… E eu respondi: o que? Quando ele responde: É hoje!”, relembra Jean.
Então, após serem quase “expulsos do prédio” pela empolgação com a notícia, o casal iria para um shopping comprar roupas novas, se entupiria de energético, e então, às 2h da manhã, antes de começar o show, entrariam no camarim do grande ídolo da Carol.
Jean, como sempre, chorou. Belo naturalmente já se incluiu no casamento, perguntou de datas. Carol explicou novamente toda a situação do casal. Uma conversa longa, genuína, e que por si só já valeria a noite. Mas ainda havia uma grande surpresa para o casal da luta quando eles chegassem no palco.
“Aí a gente foi para o palco. Estávamos lá curtindo o show e cantando emocionados lá atrás. Daqui a pouco eu olho lá na tela do computador: Atleta, Jean Silva, a esposa, Carolina de Castro”, relembra Carol.
“Do nada ele nos chamou para o meio do palco, cantou a nossa música pra gente e a gente ainda cantou para uma plateia toda”, relembra Carol do momento icônico.
E assim, mais uma vez, o casal que se conheceu em uma academia de Florianópolis colocou mais uma adição à já longa lista de sonhos realizados que, agora, no UFC, só parece aumentar no caminho do brasileiro até o cinturão.
Mas, mesmo com os sonhos aparentemente mirabolantes, a fórmula para ser um casal de sucesso não parece complexa, ao menos não na visão de Jean e Carol. Por que, desde tão cedo, eles acreditaram tanto nos projetos um do outro? A resposta, para eles, é simples: lealdade.
Lutar, mas não entre si
“A lealdade é algo que a gente sempre deixa em primeiro lugar na nossa vida”, explica Carol, com bastante certeza. O importante aqui, antes de tudo, é esclarecer que ela está falando de algo que vai muito além da fidelidade marital de evitar traições, por exemplo.
“Vocês têm o mesmo objetivo, o mesmo amor. Se entendam, se unam e levem tudo com amor, com clareza. A lealdade é a base, porque sendo leal ao seu parceiro e ele com você, nada acontece”, finaliza Carol.
Jean, por sua vez, não poderia concordar mais com sua esposa, reforçando que o real carinho dentro de uma relação nada mais é do que o cuidado para não magoar seu cônjuge.
“Às vezes a Carol fala: ah, agora tem que pisar em ovos. Eu sempre falo para ela: eu quero que pise em ovos comigo. Eu quero que você se importe se isso vai me machucar ou não. Se você não pisar em ovos com a pessoa que você diz que ama, você vai pisar em ovos com quem? Vai pisar em ovos com as pessoas fora de casa?”, explica Jean.
“Esse carinho mostra o quanto você está preparado para, não para ser casado, mas para ter uma vida feliz a dois. E isso para mim é o que mais me importa hoje”, conclui o Casal da Luta.