Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais
Publicado: 14/08/2024, 09:00
A Crônica da semana é da autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho. –
Cenira nasceu no mesmo hospital em que seu filho morreu, e Cenira nasceu de novo na frieza do Centro Cirúrgico – o da Santa Casa – quando o cirurgião, após abrir caminho através de seu abdômen, desvendou a colmeia de coágulos e manipulou a aorta lacerada. Para manter-se desperta, contou o número de pessoas no recinto – cirurgião, enfermeiro, instrumentador, mas não via os rostos, não distinguia os seres, o esforço a lançou para a escuridão enquanto o fluxo sanguíneo reencontrava seu caminho natural.
Quando Cenira deu por si, havia se perdido nos dias. Os olhos não viam e os membros não sentiam os tubos e agulhas que se ligavam ao seu corpo. Dormiu e acordou muitas vezes, ouviu vozes, sonhou com o filho morto no corredor ao lado, sentiu que a viravam e limpavam, a criança chorava. Cenira perturbou-se, o Inácio teria hoje 23 anos, não pode estar ali ao lado chorando como… naquele dia. Desfalecia, prostração viscosa se entranhava nela, quis tocar em si e não se achou.
Prometeu que, ao sair, visitaria o túmulo do filho, sentaria próxima ao jazigo pequeno, na coluna de pedra, e assim tentou fazer. Ninguém a buscou (o pai dera no pé, não conheceu o filho nem durante os poucos anos em que ela conheceu), apanhou um táxi, mas não para casa. Pediu o Cemitério do Cerradinho e o carro deslizou para os confins da Comarca.
Inácio morrera há quase dezoito anos e Cenira ainda sentia as dores agulhando de pouquinho na emboscada das coisas mínimas. Os eucaliptos imensos que ladeiam a Rodovia Agostinho Schwab sempre a faziam pensar num cortejo fúnebre – os primos, os tios de costas para a parede e braços cruzados no velório, maldizendo o pai ausente – tanto tempo passado, os eucaliptos ainda velavam Inácio.
Cenira viu que o taxista não estacionou à frente do cemitério e tentou orientá-lo; a rodovia de terra remetia a um faroeste, memória baça do filho, vestido de caubói, girando com os polegares os revólveres imaginários e soprando os indicadores após o tiro amigável contra a mãe, que ria e se fingia de morta, alheia aos disparos que seu coração verdadeiramente receberia e que a levariam àquela rodovia sem fim.
O taxista estacionou no meio do ermo, deu a volta e abriu a porta. Cenira saiu para protestar e viu que vinha sendo conduzida pelo filho. Inácio crescera, tinha os olhos do avô, olhos que sorriam.
Abraçaram-se, Cenira sentiu que molhava os ombros fortes do filho, sentiu-se destruir, depois voltaram ao carro, sentou-se ao seu lado e Inácio deu a partida.
*Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais (acesse aqui).