Técnico estrangeiro no Brasil. Quantas vezes isso foi tema de discussões nos últimos anos e causou críticas acaloradas de quem aponta um exagero nas chances oferecidas a quem não nasceu no país? Pois bem, troque o Brasileirão pela Premier League e o “problema” não continua: ele aumenta.
O Liverpool, atual campeão, segue nas mãos do holandês Arne Slot; Pep Guardiola, espanhol, vai para o décimo ano no Manchester City; na mesma cidade, cabe ao português Ruben Amorim tentar recolocar o Manchester United nos trilhos. A lista é imensa e leva à pergunta: onde estão os treinadores ingleses?
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Eles até aparecem na elite, mas bem timidamente. Dos 20 times que iniciam a nova temporada da Premier League, novamente com transmissão ao vivo dos 380 jogos no Disney+, apenas três estão nas mãos dos “locais”: Eddie Howe dirige o Newcastle, Graham Potter permanece à frente do West Ham e Scott Parker comanda o recém-promovido Burnley.
Esse é um reflexo do que se tornou a liga inglesa nas últimas décadas. Basta lembrar que em 1992, no pontapé inicial da sua primeira edição, apenas um dos 22 técnicos não era nascido no Reino Unido: o irlandês Joe Kinnear, do Wimbledon, que acabou em 12º lugar naquela temporada.
Tal futebol, é verdade, era diferente. Uma época em que estrangeiros, mesmo os europeus, ocupavam vagas de extracomunitários na Inglaterra. A lei evoluiu, o país abriu as fronteiras para jogadores de fora e tal fenômeno atingiu as áreas técnicas.
Hoje, 17 clubes são dirigidos por não ingleses. O domínio é de espanhóis (Pep Guardiola, Mikel Arteta, Unai Emery e Andoni Iraola) e portugueses (Marco Silva, Nuno Espírito Santo, Rúben Amorim e Vítor Pereira). O último, vale lembrar, dirigiu Corinthians e Flamengo antes de se aventurar pela Inglaterra.
Espanha e Portugal fazem parte da elite do futebol, mas nem só países do grande eixo ganham espaço nas áreas técnicas inglesas.
Basta ver o Crystal Palace, campeão da Copa da Inglaterra nas mãos do austríaco Oliver Glasner; ou ainda o Tottenham, que trocou o australiano Ange Postecoglou pelo dinamarquês Thomas Frank.
Se os números brutos chamam atenção, o percentual tem o mesmo efeito, ainda mais se comparado às grandes ligas da Europa. Com 85% de técnicos estrangeiros, a Premier League é a única em que os “locais” não dominam as principais vagas de trabalho.
LALIGA, por exemplo, tem apenas seis treinadores nascidos fora da Espanha; Itália e Alemanha, com sete, aparecem na sequência. Quem mais se aproxima, ainda que com boa distância, é a França, em que oito dos 18 clubes da Ligue 1 estão nas mãos de estrangeiros (entre eles o PSG, dirigido por Luis Enrique).
“Não acho que seja suficiente [o número de ingleses na Premier League]”, desabafou recentemente Ryan Giggs, ícone do Manchester United que marcou época nas mãos de Sir Alex Ferguson – um escocês, é verdade, mas ainda assim nascido no Reino Unido.
“Se você não tem uma chance, não vai conseguir provar o que é capaz de fazer com um time qualificado. É claro que existem técnicos estrangeiros de qualidade também, mas eu penso no equilíbrio. Aqui tem muitos estrangeiros no momento, o que tira a chance dos ingleses”, continuou o ex-jogador, em entrevista à BBC.
Ferguson é um bom exemplo para explicar a predominância de estrangeiros. Mesmo aposentado há mais de uma década, ele ainda é disparado o técnico mais vezes campeão da Premier League desde sua criação, em 1992/93. São 13 títulos, todos pelo Manchester United.
Kenny Dalglish, outro escocês e campeão com o Blackburn em 1995, aumenta o número de títulos do país no principal campeonato nacional do mundo. O ranking de campeões tem espanhóis e italianos, além de francês, português, alemão, chileno e holandês.
Os ingleses? Bom, a última vez que um treinador nascido na Inglaterra venceu o campeonato foi em 1991/92: Howard Wilkinson levou o Leeds United ao título da chamada First Division, como era conhecida a competição antes da Premier League. Desde então, nenhum outro chegou perto da taça.
Isso não acontece nas principais ligas do mundo. Há poucos meses, Itália, Holanda e Portugal consagraram treinadores locais como campeões. Alemanha, Espanha e França fizeram o mesmo há dois anos. No Brasil, em que os portugueses Abel Ferreira e Artur Jorge levantaram os títulos recentes, o último a chegar ao topo foi em 2021: Cuca, pelo Atlético-MG.
“Nunca me incomodou, porque acredito que, se você é bom o bastante para conseguir emprego, você vai conseguir”, defendeu Sean Dyche, inglês normalmente contratado para tentar evitar o rebaixamento de equipes menores na liga. “São os resultados que custam o emprego dos técnicos, não importa de que parte da Terra eles sejam”.
Tudo aponta para que o jejum continue. O Burnley de Scott Parker se dará por satisfeito com qualquer coisa que não seja a queda. O West Ham, ainda com Graham Potter, não pode almejar o troféu, algo que o Newcastle até sonha, embora saiba que, por mais que o trabalho de Eddie Howe seja louvável, é praticamente impossível competir com os maiores.
O grupo dos grandes da Inglaterra, de certo ponto, contribui para a escassez de títulos dos treinadores locais. Tirando as experiências recentes do Chelsea, que chegou a apostar em Potter e até Frank Lampard em anos recentes, os outros do Big Six priorizam sempre estrangeiros.
Arsenal e Manchester United, que marcaram época nas mãos de Arsène Wenger e Alex Ferguson, não são comandados por ingleses desde meados dos anos 1980. O último a trabalhar no City foi em uma época anterior ao dinheiro de Abu Dhabi e bem antes de Pep Guardiola. Liverpool e Tottenham até possuem apostas relativamente recentes, mas só conseguiram resultados com “gringos”.
Há alguma perspectiva de que isso mude? Pelos dias de hoje, soa improvável. A globalização do futebol, aliada ao crescimento da Premier League no mundo, abre portas que dificilmente serão fechadas em um futuro tão próximo.
Se os brasileiros já lidam com a necessidade de adequação em meio às chegadas de Jorge Jesus, Abel Ferreira, Artur Jorge e tantos outros, os ingleses convivem com isso há décadas. Bom ou ruim? Depende do ponto de vista.