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Em época de seca, bagaço de cana pode garantir energia elétrica

Uma das principais alternativas que vem se consolidando como uma forma para diversificar a matriz elétrica brasileira é a bioeletricidade gerada a partir do bagaço de cana-de-açúcar. Isso ajuda a reduzir a dependência das hidrelétricas, altamente vulneráveis às variações climáticas.

Durante a estação seca, quando os reservatórios atingem níveis críticos e a produção hidrelétrica diminui, o bagaço entra em ação. A energia da cana supre o sistema elétrico nacional, assegurando fornecimento estável e seguro. Outro diferencial é a possibilidade de priorizar sua geração no período noturno. Assim ela age de forma complementar a energia solar fotovoltaica, cujo pico ocorre durante o dia.

Um estudo publicado na revista Renewable Energy mostra que a bioeletricidade proveniente do bagaço apresenta uma pegada de carbono de cerca de 0,227 kg de CO₂ equivalente por kWh. Esse valor é significativamente menor do que o de termelétricas a diesel, que pode chegar a 1,06 kg de CO₂ equivalente por kWh.

É importante destacar que, mesmo mensuráveis, essas emissões da bioeletricidade do bagaço da cana não adicionam carbono novo à atmosfera. O ciclo começa com a cana, que atua como um “filtro natural” ao absorver CO₂ durante a fotossíntese e transformá-lo em biomassa. Após a colheita e o processamento, parte desse carbono se concentra no bagaço, que, ao ser queimado nas caldeiras para geração de energia, libera de volta apenas uma pequena fração do CO₂ previamente capturado. Enquanto isso, novas plantações de cana já estão em crescimento, reiniciando o processo de absorção.

Dessa forma, a bioeletricidade do bagaço se mostra uma fonte renovável de baixíssimo impacto em emissões, ao mesmo tempo em que fortalece a diversificação e a resiliência da matriz elétrica brasileira. Além disso, ela tem como base um resíduo já disponível da produção de alimento (açúcar) e de biocombustível renovável (etanol). “Tudo isso lhe dá um seu papel estratégico para a segurança energética e para a transição rumo a um sistema mais sustentável e equilibrado”, afirma Vinicius Bufon, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente (SP).

No entanto, estudo internacional liderado pela Embrapa, em parceria com instituições como a Universidade das Nações Unidas e a Universidade de Bonn, na Alemanha, alerta que essa fonte estratégica também enfrenta riscos importantes. A pesquisa analisa como as secas severas afetam a geração de bioeletricidade no Brasil, revelando que a produção depende da interação complexa entre fatores agrícolas, industriais e climáticos.

Riscos de “apagões hídricos-energéticos”

O estudo demonstra que, embora a bioeletricidade da cana seja uma alternativa renovável de grande potencial, ela é vulnerável a gargalos estruturais e pode ser comprometida em períodos críticos.

Entre os principais desafios identificados estão a escassez de barragens para armazenamento de água da chuva, resultado da falta de linhas de crédito e das dificuldades de licenciamento ambiental, o que limita a capacidade de enfrentar longas estiagens. O baixo investimento em irrigação nos canaviais, o que aumenta a dependência das chuvas em regiões cada vez mais sujeitas a variações climáticas. A fragilidade dos seguros agrícolas contra a seca, que não refletem os riscos reais enfrentados pelos produtores, deixando-os expostos a prejuízos severos. A ausência de sistemas robustos de alerta precoce, que poderiam antecipar cenários de risco e permitir respostas mais rápidas e eficazes.

Essas vulnerabilidades reforçam a necessidade de fortalecer políticas públicas e ampliar investimentos que integrem de forma articulada as dimensões social, ecológica e tecnológica do setor, segundo explica Bufon. “A bioeletricidade da cana tem um papel único porque a sua produção coincide exatamente com o período de estiagem, quando a geração hidrelétrica cai. Mas, para mantermos essa contribuição estável, precisamos enfrentar as fragilidades estruturais e institucionais que ainda limitam o setor”, defende o especialista.

A pesquisa também aponta soluções para reduzir os riscos e aumentar a resiliência do setor sucroenergético, como expandir a irrigação em áreas estratégicas; modernizar e digitalizar os sistemas de irrigação existentes, minimizando perdas; aprimorar estratégias de manejo hídrico integradas e fomentar políticas públicas de incentivo, garantindo instrumentos de apoio a produtores e indústrias na adoção dessas medidas, além de estimular a inovação e difusão tecnológica no setor.

Bufon ressalta que muitas dessas soluções já estão em desenvolvimento ou aplicação em pesquisas conduzidas pela Embrapa. “Nosso foco é contribuir para uma agricultura climaticamente inteligente, que não apenas aumente a produtividade, mas também fortaleça a capacidade de adaptação às mudanças climáticas e contribua para a redução das emissões de gases de efeito estufa”, conta.

Um dos pontos centrais da análise é mostrar como a bioeletricidade da cana se integra de forma sinérgica e complementar a outras fontes renováveis, fortalecendo a matriz energética. Enquanto a geração solar fotovoltaica é mais limitada durante o inverno e nos meses secos do Centro-Sul, além de só poder ser produzida durante o dia, e a geração hidrelétrica sofre com a redução dos reservatórios na estiagem, a bioeletricidade da cana pode ser gerada também à noite e atinge o seu auge justamente no período da seca, quando ocorre a colheita da safra.

Com isso, os pesquisadores consideram o setor sucroenergético um aliado fundamental na busca por maior segurança energética. “Quando as hidrelétricas reduzem a sua geração, as termelétricas a biomassa de cana (bagaço e palha) assumem papel decisivo para garantir a estabilidade do sistema elétrico. É um recurso firme, capaz de oferecer suporte confiável justamente nos períodos mais críticos do ano”, reforça Bufon.

Os resultados da pesquisa foram publicados na revista científica Environmental Advances. O artigo destaca que, em países altamente dependentes da hidreletricidade, como o Brasil, é fundamental investir em fontes complementares capazes de reduzir a vulnerabilidade climática e operacional do sistema.

Para os pesquisadores, a bioeletricidade da cana é um dos caminhos mais promissores, desde que sejam superados os gargalos que hoje limitam a sua expansão e estabilidade.

Agricultura climaticamente inteligente

As medidas propostas se alinham ao conceito de Agricultura Climaticamente Inteligente, que busca conciliar três objetivos principais: elevar de forma sustentável a produtividade agrícola, fortalecer a resiliência dos sistemas produtivos e reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

Nesse contexto, a bioeletricidade da cana se apresenta como uma solução que vai além do setor energético, conectando-se a uma agenda mais ampla de sustentabilidade e segurança alimentar. Ao utilizar resíduos agrícolas para gerar energia, o setor contribui para a economia circular e fortalece a bioeconomia, reduzindo a dependência de fontes fósseis e otimizando o aproveitamento dos subprodutos da lavoura.

A pesquisa mostra que, embora os desafios sejam significativos, as oportunidades são ainda maiores. O Brasil, por ser um dos maiores produtores de cana-de-açúcar do mundo, possui vantagens comparativas únicas para consolidar a bioeletricidade como parte central da matriz elétrica. O avanço dependerá, no entanto, de investimentos contínuos em infraestrutura, inovação tecnológica e políticas públicas integradas de longo prazo.

Para Bufon, o setor sucroenergético pode desempenhar papel decisivo não apenas no fornecimento de energia, mas também na transição para uma economia de baixo carbono. “Se conseguirmos fortalecer a resiliência da bioeletricidade, estaremos dando um passo importante para garantir a segurança energética do país e para cumprir os compromissos internacionais de mitigação climática”, conclui o pesquisador.

*Sob supervisão de Luis Roberto Toledo

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