Em 14 de junho de 2021, em palestra proferida no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), o ministro aposentado Francisco Rezek, do Supremo Tribunal Federal (STF), e também juiz da Corte Internacional de Justiça da ONU criticou o STF nos seguintes termos: “Uma das principais queixas dos advogados a respeito da Justiça brasileira, mas especialmente do STF, neste momento, é a de que há um excesso de autoridade convivendo com a escassez de leitura”.
Essa opinião me veio à mente ao ler a decisão de Alexandre de Moraes determinando medidas cautelares contra Jair Bolsonaro. Provavelmente ciente do absurdo jurídico que acabava de cometer, para não falar da imoralidade do ato, o agora formalmente sancionado pelos EUA tratou de adornar a peça teratológica com erudição afetada. Mas, como o excesso de autoridade convive com a escassez de leitura, o sujeito deu com os burros n’água.
Na abertura da seção referente ao dispositivo orientador da decisão, Moraes citou Machado de Assis, de modo a sugerir ser um leitor voraz do Bruxo do Cosme Velho — muito embora, como bem observou o advogado Enio Viterbo, ele tenha provavelmente retirado a citação do site Migalhas. Catando às pressas uma citação à guisa de ostentação de cultura, e retirando-a do contexto geral da crônica da qual é parte, o pretenso imperador do Brasil não notou que, como registrou Mateus Conte na Oeste, o texto original de Machado de Assis denunciava a manipulação eleitoral nos tempos do Império, e criticava o emprego oportunista e ilusório da noção de “soberania nacional” por parte da classe política da época. Em suma, se hoje Moraes cita elogiosamente Machado de Assis, decerto o teria metido num dos inquéritos ilegais do STF caso lhe fosse contemporâneo, acusando-o de atacar as instituições democráticas e trair a pátria.
Mas há ainda uma oura ironia na referência ao mestre maior de nossa literatura, uma vez que Moraes não domina suficientemente o vernáculo sequer para conseguir proferir seus impropérios políticos em forma de despacho (no sentido jurídico e não umbandístico do termo, bem entendido). Eis que, no clímax narrativo do dispositivo, o homem me sai com esta construção frasal:
“É um PRINCÍPIO INFLEXÍVEL [sic] da Constituição brasileira a independência do Poder Judiciário em defesa da Constituição brasileira, e a história desse SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL [sic] demonstra que jamais faltou coragem aos seus membros para repudiar as agressões contra os inimigos da Soberania nacional, Democracia e Estado de Direito, sejam inimigos nacionais, sejam inimigos estrangeiros”.


Por óbvio, Moraes pretendia dizer que, aos membros do STF, nunca faltou coragem para repudiar as agressões contra a soberania nacional etc. O que acabou dizendo, no entanto, foi que nunca faltou coragem ao STF para repudiar as agressões contra os inimigos da soberania nacional. Diante da suprema incapacidade de expressão inteligível, um leitor maldoso poderia sugerir tratar-se de um ato falho, a admissão acidental de proteção aos inimigos da soberania nacional. Mas o açodamento e a falta de domínio da língua são uma hipótese mais simples que o desejo inconsciente de confissão. Quanto ao nosso Machado de Assis, ele não merecia ter sido acordado da tumba para um espetáculo cultural tão degradante. E, caso o brasileiro contemporâneo dirigisse ao ilustre fantasma a mesma pergunta que Hamlet dirigiu ao espírito do pai — “por que teus bentos ossos encerrados no ataúde romperam os selos; por que te levantaste do túmulo em que te havíamos depositado; por que se ergueu a lápide sepulcral para te lançar a este mundo? Por quê? Com que fim? Que exiges?” —, é provável que Machado apenas respondesse, casmurro: “Para rogar que me esqueçam!”
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