
Em paralelo à repressão ao seu comércio como uma droga ilegal, a cannabis é, cada vez mais, percebida internacionalmente como uma fonte de riqueza, cobiçada por setores produtivos que vão da agricultura ao setor farmacêutico.
Só no Brasil estima-se que 670 mil pessoas utilizem fármacos à base de cannabis para tratar problemas como esclerose múltipla, epilepsia refratária e dor crônica. Porém, a falta de regulamentação atravanca a atuação de universidades, empresas e outros interessados na pesquisa científica sobre a planta.
Nesse sentido, algumas iniciativas estão em andamento para reverter este quadro. Uma delas foi a divulgação, em setembro, de uma nota técnica elaborada por um grupo de trabalho listando 481 empecilhos burocráticos e regulatórios enfrentados por quem conduz, ou deseja conduzir, estudos com a cannabis.
A proposta de regulamentação
O chamado Grupo de Trabalho (GT) de Regulamentação Científica da Cannabis criado pela Embrapa compreende 31 instituições de ensino e pesquisa.
O relatório agrupa esses tópicos em sete eixos:
- as autorizações para pesquisa;
- o acesso a insumos padronizados;
- as restrições ao cultivo para fins científicos;
- o fluxo de materiais entre instituições;
- as incertezas quanto ao uso de coprodutos e derivados;
- a falta de protocolos claros para pesquisas com animais de produção.
O documento foi encaminhado ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgãos responsáveis por regulamentar a investigação e o comércio de substâncias consideradas de controle especial.
André Gonzaga dos Santos, docente da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Unesp em Araraquara e integrante do GT que elaborou a nota, diz que o documento evidencia o interesse de diversas instituições em desenvolver estudos sobre o tema e expressa os entraves que têm impedido esses avanços.
Gonzaga ainda ressalta o enorme potencial do Brasil para lucrar com a planta. O Anuário da Cannabis Medicinal estima que o mercado brasileiro para fins farmacêuticos possa movimentar R$ 9,4 bilhões por ano.
“Precisamos de uma regulamentação que garanta a autonomia das universidades para realizar pesquisa. Isso não significa que não deve ter controle, ele deve existir. Mas precisamos garantir a autonomia”, afirma o pesquisador.
Os principais obstáculos
Ainda que, em tese, existam caminhos legais que permitam as pesquisas, o grupo de trabalho da Embrapa identificou diversos entraves que, na prática, impedem avanços sólidos na área.
O principal deles é a burocracia para obtenção das autorizações, que, de acordo com a nota técnica, envolve prazos indefinidos, falta de transparência nas etapas de análise e ausência de critérios padronizados de avaliação.
“Eu tentei importar do Uruguai e Paraguai. Pedi seis amostras de canabinoides, com um miligrama cada. Elas demoraram mais de um ano para chegar e custaram mais de R$ 20 mil”, conta André Santos, da FCF em Araraquara.
A importação também não garante a padronização dos insumos, já que eles vêm de países com diferentes padrões de qualidade e de plantas com diferentes genomas, o que compromete a consistência e reprodutibilidade dos resultados.
Além disso, o pesquisador afirma que um interesse importante da comunidade científica é entender como a cannabis cresce especificamente nos solos e condições climáticas do Brasil.
“Estudar produtos importados não vão contribuir em nada para desenvolver a cadeia produtiva nacional, porque a planta se comporta completamente diferente aqui”, diz.
O cenário atual
Assim, o grupo de trabalho defende a criação de normas específicas para as pesquisas com cannabis no país, que tornem os processos mais ágeis e transparentes.
“Precisamos de uma regulamentação que garanta autonomia, ainda que com controle e registro de todas as atividades. Isso traria segurança para os pesquisadores”, ressalta o pesquisador.
Essa regulamentação ajudaria a padronizar os procedimentos científicos e beneficiaria os setores farmacêutico e agrícola — além de reduzir os custos das pesquisas e, consequentemente, o preço final dos medicamentos quando eles chegam às gôndolas.
Medicamentos à base de canabinoides que custam até R$ 2 mil nas versões importadas têm equivalentes nacionais fabricados por associações canábicas que alcançam só 40% desse valor.
Além disso, o cânhamo industrial — nome que se dá a variedades de cannabis com baixo teor de THC cultivadas para obtenção de fibra — tem grande potencial econômico para a indústria têxtil e a produção de papel.
*Com informações do Jornal da Unesp/Nathan Sampaio


