As mesmas ferrovias que um dia eram responsáveis pelo desenvolvimento econômico de Ponta Grossa, e que fazem referência a toda uma cultura e memória dos moradores do município, hoje fazem parte do desafio para o novo desenho de expansão da cidade. O traçado ferroviário de Ponta Grossa, concedido e administrado pela Rumo Logística, conta com 87 km de trecho de linha férrea em perímetro urbano, conforme estudo indicado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
Entre os trechos que atravessam o perímetro urbano, ao menos 32 relações de passagens em nível foram pesquisadas pelo Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), como explica o secretário de Infraestrutura e Planejamento de Ponta Grossa, Luiz Henrique Honesko. “Com o EVTEA, temos um mapeamento de riscos abrangentes, avaliando 32 passagens em nível na área urbana de Ponta Grossa. Deste total, 11 foram tecnicamente indicadas como viáveis para receber obras de transposição em desnível, constituindo os pontos de criticidade prioritários identificados pelo estudo”. Para Honesko, o desafio atual com as ferrovias também instiga a gestão a pensar nos próximos passos. “A ferrovia foi a artéria que impulsionou o crescimento socioeconômico de nossa comunidade. Contudo, o desafio reside em transformar essa herança em uma convivência urbana otimizada e em um catalisador para o futuro, exigindo investimentos robustos em infraestrutura”.

Luiz Henrique Honesko, secretário de Infraestrutura e Planejamento de Ponta Grossa, afirma que gestão visualiza o futuro da cidade a partir do EVTEA, atrelado ao notório crescimento da cidade nos últimos anos | Foto: Arquivo JM/aRede.
Dentre elas, as regiões que aparecem indicadas como propícias para a solução integrada, cujas obras seriam um conjunto da alteração da localização de pátios e demais instalações ferroviárias com a construção de transposições simples, são a Estrada da Bocaína; as entradas entre a rua Sabiá e rodovia do Café (BR-376); a rua Santo Valério e a avenida Paul Harris, no bairro Chapada; a avenida Visconde de Sinimbú, no bairro Nova Rússia; a avenida Monteiro Lobato, no bairro Jardim Carvalho; e a rua Rio Verde, no bairro Neves. Ao todo, o valor da execução desta obra está indicado como R$ 213 milhões.
As outras soluções projetadas pelo EVTEA, como o rebaixamento da linha férrea entre o trecho ferroviário de Apucarana até o bairro de Uvaranas, em Ponta Grossa, no valor de R$ 489 milhões, bem como a implantação de um Contorno Ferroviário, no mesmo trecho, com um custeio de R$ 791 milhões, não foram consideradas viáveis pelo estudo, o que o secretário questiona. “Note o dinamismo e o crescimento meteórico que Ponta Grossa tem experimentado nos últimos anos. É possível pensar que a proposta de solução integrada poderá se mostrar obsoleta bem antes do período de vida de uma concessão como essa, que geralmente se viabiliza num horizonte de 30 ou 40 anos”, diz.

Túnel no San Martin é uma das áreas da cidade que se dividem entre perímetro urbano e traçado ferroviário | Foto: Bernardo Rosas/aRede.
Na última quarta-feira (1º), a Prefeitura de Ponta Grossa recebeu anuência da Rumo para intervenções de responsabilidade da concessionária na região do bairro Neves, com um projeto de R$ 40 milhões.
LOGÍSTICA – A malha ferroviária de Ponta Grossa é um hub logístico fundamental para o escoamento da produção agrícola e industrial do estado. Porém, em suas atuais condições, as ferrovias têm “esbarrado” na expansão urbana da cidade. “Precisamos de um planejamento estratégico de longo prazo que destrave esse potencial, permitindo uma sinergia urbana-ferroviária que beneficie tanto a logística do país quanto a qualidade de vida dos cidadãos ponta-grossenses”, diz Honesko.

João Arthur Mohr, superintendente da Federação das Indústrias do Estado do Paraná (Fiep), traz o contexto histórico da concessão da malha ferroviária de Ponta Grossa. | Foto: Reprodução/Arquivo pessoal.
CONCESSÃO – Para João Mohr, superintendente da Federação das Indústrias do Estado do Paraná (Fiep), a malha ferroviária de Ponta Grossa é uma grande oportunidade de expansão logística e industrial para o município. Entretanto, o gestor da Fiep aponta que, no atual contrato de concessão com a Rumo, que finaliza em fevereiro de 2027, este potencial não é aproveitado por falhas contratuais que se acumulam por quase 30 anos. “Em 1996, a rede ferroviária estava sucateada e foi concedida à iniciativa privada em várias ‘malhas’. No Paraná, a Malha Sul acabou nas mãos da América Latina Logística (ALL), depois comprada pela Rumo. O contrato era muito simples, sem exigir investimentos, metas de desempenho ou volumes de carga”, conta.
OPERAÇÕES – Segundo o superintendente, companhia tem dado prioridade para operações no Porto de Paranaguá. “A Rumo concentrou-se apenas no trecho mais rentável, que passa por Ponta Grossa até Paranaguá, sem grandes melhorias. O novo contrato precisa corrigir isso, trazendo regras claras, metas de eficiência e oferta de vagões para todo o Estado”. Conforme dados disponibilizados por Mohr, o Porto de Paranaguá movimenta 66 milhões de toneladas por ano, mas só 20% deste total chega de trem, ou seja, 12 milhões de toneladas. “Ainda temos pouca oferta de trem e ficamos estancados com o desempenho ferroviário. Mas teremos uma oportunidade única em 2027. Precisamos modernizar o próximo contrato, com parâmetros que definam retornos para a cidade de forma justa”.

87 km de trilhos ferroviários passam pelo perímetro urbano de Ponta Grossa | Foto: Arte/Geverson Cunha/Grupo aRede.
Para Mohr, o potencial previsto para os próximos dez anos, é mais que dobrar esse número, um aumento de 2,5 vezes, chegando a 30 milhões de toneladas por ferrovia. “Isso nos leva a quatro pontos benéficos: 1) reduzir custos logísticos, 2) cortar emissões de carbono, 3) diminuir acidentes nas estradas e 4) melhorar a qualidade de vida dos motoristas”. Em dez anos, a meta prevista é sair de 80% rodoviário e 20% ferroviário para 60% e 40%, respectivamente, o que representaria menos 433 mil caminhões circulando pelas rodovias, considerando a capacidade de uma carreta de três eixos, conhecida popularmente como “Vanderleia”.
Rafael Rickli, coordenador regional da Fiep, concorda com o posicionamento de Mohr. “Ainda falta eficiência na integração urbana e logística. O potencial está longe de ser totalmente explorado, principalmente porque não temos, hoje, plataformas logísticas modernas, como um Porto Seco conectado diretamente à ferrovia, que ampliariam o uso deste modal”, diz. Para ele, o gargalo de mobilidade em perímetro urbano pode ser solucionado com a alternativa da construção de um contorno. “Acredito que a longo prazo, podemos pensar em um contorno ferroviário próximo ao contorno rodoviário que será implementado. Tirar a ferrovia do perímetro urbano pode melhorar a utilização e a integração das áreas urbanas”.

Rafael Issa Rickli, coordenador do Conselho Regional da Fiep, acredita que uma solução a longo prazo é a melhor opção para resolver gargalo logístico das ferrovias de Ponta Grossa. | Foto: Arquivo JM/aRede.
FUTURO – De acordo com Mohr, a atual concessão, assim como a próxima, seja ela renovada pela Rumo ou não, deve pensar também em competitividade logística. “A ferrovia ajuda a desenvolver Ponta Grossa porque atrai indústrias que dependem de logística eficiente. Isso representa economia para as empresas e mais competitividade para a região”, diz. Além do agro, setores industriais, como montadoras e novas fábricas, como a XBRI, fabricante de pneus, que importam matéria-prima pelo Porto de Paranaguá, podem trazer suas cargas por vagões ao invés de focar sua logística somente nas rodovias.
O impasse entre cidade e ferrovia coloca Ponta Grossa diante de um desafio para dar continuidade a sua expansão urbana e logística. As decisões sobre o futuro da malha, seja pela renovação da concessão ou por novos investimentos, terão impacto direto não somente na mobilidade urbana, mas também na competitividade econômica do município.

Imagem aérea revela atual situação de antiga oficina ferroviária, no bairro Oficinas | Foto: Divulgação/Justiça Federal do Paraná.
Vistoria revela abandono de oficinas ferroviárias e ameaça ao patrimônio histórico em PG
A Justiça Federal do Paraná realizou, em 16 de setembro, uma vistoria na antiga oficina ferroviária de Ponta Grossa, no bairro Oficinas, e constatou abandono generalizado do espaço. O juiz federal Antônio César Bochenek, da 2ª Vara Federal de Ponta Grossa, é responsável pelo caso, e registrou em despacho que o local está tomado por lixo, carcaças de veículos e sinais de incêndios, sem qualquer cuidado ou manutenção. Ele também revelou à equipe de Jornalismo do Grupo aRede que cerca de 400 casas situadas próximas às áreas ferroviárias da cidade estão em análise e precisarão ser regularizadas.

Juiz federal Antônio César Bochenek, da 2.ª Vara Federal de Ponta Grossa, assinou um despacho que categoriza área concedida pela Rumo como “completamente abandonada e sem cuidados” | Foto: Reprodução/Arquivo pessoal.
A ação judicial foi movida pela Defensoria Pública da União (Dpu) contra a concessionária Rumo e órgãos públicos, buscando medidas concretas para lidar com ocupações irregulares ao longo da malha ferroviária. O processo envolve ainda órgãos como o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), a Agência Nacional de Transportes Terrestres (Antt) e a Prefeitura Municipal de Ponta Grossa (PMPG). Com a vistoria, foi notada uma situação contrastante com o Parque Linear, que foi revitalizado, e segue com obras para ampliação.

Vistoria consta que antiga oficina contrasta com outros locais que remetem à memória do desenvolvimento da cidade em conjunto às ferrovias | Foto: Divulgação/Justiça Federal do Paraná.
A equipe do Grupo aRede conversou com moradores de áreas em que o perímetro urbano é atravessado pela malha ferroviária, como na trincheira San Martin, em que uma popular afirmou que mora na região há três anos, e conta que “no início, parecia que toda vez que o trem passava, ele estava dentro da minha casa, mas acabei me acostumando”, referindo-se ao barulho que a locomotiva faz. Hoje, ela afirma que o maior problema no local é o trânsito, visto que o acesso ao bairro se faz pela trincheira de via única, de baixo dos trilhos. Já no Cará-Cará, na avenida Quatorze Bis, populares foram consultados sobre suas residências ao lado do trilho do trem. “É sagrado: todo dia, às quatro e meia da manhã, o trem passa. O barulho me incomoda, e minha casa treme, então eu sempre acordo neste horário”, apesar do relato, a moradora diz se sentir segura em sua moradia.
O pesquisador Leonel Brizola Monastirsky explica que a falta de preservação é um reflexo de descuido com o aspecto patrimonial do planejamento urbano. Segundo ele, o complexo ferroviário do município foi deixado de lado. “As vilas ferroviárias praticamente desapareceram. Algumas casas ainda resistem em Uvaranas e Oficinas, mas sua preservação ocorre mais pelos próprios moradores, que as deixaram da forma como estão após comprá-las, do que por políticas públicas. Sem tombamento, podem ser demolidas a qualquer momento”, afirma.

Leonel Brizola Monastirsky, pesquisador, traz ao debate a preocupação com a memória ferroviária, de grande valor para Ponta Grossa | Foto: Reprodução/Arquivo pessoal.
PATRIMÔNIO – Esse processo de perda patrimonial afeta diretamente a identidade do bairro de Oficinas, que no início do século XX abrigava a maior oficina ferroviária do Brasil, com quase 600 trabalhadores. Hoje, a região é marcada pelo comércio e por novos empreendimentos, restando apenas vestígios do período em que o bairro simbolizava a força ferroviária de Ponta Grossa. “A identidade ferroviária está se apagando, e só um olhar atento consegue perceber os poucos sinais ainda preservados”, reforça Monastirsky.
Além do patrimônio arquitetônico, a conexão da malha ferroviária com a cidade também foi esvaziada. O arquiteto e urbanista e membro do Conselho da Comunidade do Grupo aRede, Henrique Zulian, destaca que a infraestrutura poderia ter sido aproveitada para transporte coletivo. “Perdemos a chance de integrar a ferrovia à mobilidade urbana. Hoje, a malha de cargas praticamente não dialoga com a cidade”, lamenta.

Henrique Zulian, arquiteto e urbanista, aponta caminhos para pensar na preservação patrimonial das ferrovias e antigas oficinas de Ponta Grossa | Foto: Arquivo JM/aRede.
Zulian aponta que a preservação dos imóveis que fazem referência à memória ferroviária de Ponta Grossa pode melhorar. “Apesar da situação com os galpões da rede ferroviária, temos exemplos positivos. Tanto o Sesc quanto o Hub de inovação na antiga Estação Arte são bem-vindos, aliás, o patrimônio se preserva com mais facilidade a partir do seu uso. Entendo, no entanto, que a forma de preservação ainda é falha. O cercamento com grades de qualidade duvidosa, por exemplo, descaracteriza o entorno e reduz a atratividade e o cuidado coletivo com o espaço público”, avalia.
Para ele, a oficina da ferroviária, hoje abandonada, poderia se tornar em centro cultural ou museu, valorizando a história local, uma possibilidade que poderia trazer solução para a insegurança ambiental e social que hoje é apontada pela Justiça. Com a vistoria, foi estabelecido um prazo de 30 dias para que todas as partes apresentem informações sobre a situação dos imóveis, medidas para conter ocupações e processos de cessão das áreas ao município. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) também foi intimado a se manifestar sobre o estado das construções.
Uma nova audiência de conciliação foi marcada para 15 de outubro de 2025, quando se espera que haja encaminhamentos concretos sobre o destino do patrimônio das oficinas. Portanto, as ferrovias ainda estão em situadas em um cenário em que a sua atual condição pode estar impedindo o desenvolvimento da cidade e, a partir disto, as autoridades seguem buscando alternativas para tirar projetos que solucionem tais gargalos logísticos e patrimoniais do papel.