
Mário Rodrigues Montemor Netto é conselheiro na área da Saúde –
O conselheiro da área da Saúde do Grupo aRede, Mário Rodrigues Montemor Netto, faz uma análise de Ponta Grossa como um paciente. Ele lembra que as cidades estão doentes, e questiona de que forma os novos ‘corredores viários’ do município ponta-grossense impactarão nesse processo – entenda a discussão aqui. Para ele, mais asfalto não significa necessariamente uma melhora na mobilidade urbana.
Confira abaixo a opinião na íntegra de Mário, que é médico, pesquisador, professor e presidente da Associação Médica de Ponta Grossa (AMPG):
“A cirurgia de R$ 95 milhões: os novos corredores de Ponta Grossa curam a doença ou apenas tratam o sintoma?
O recente anúncio de um aporte robusto de cerca de R$ 95,2 milhões em ‘corredores de desenvolvimento’ e novas extensões viárias em Ponta Grossa representa uma intervenção de grande magnitude no sistema circulatório da cidade. Conforme detalhado pelo Portal aRede, o objetivo desses projetos é otimizar o tempo de deslocamento, desafogar o trânsito e promover maior qualidade de vida aos ponta-grossenses, ligando vilas e bairros.
No entanto, ao olharmos para esse investimento, a pergunta crucial, vista sob a ótica da Fisiopatologia da Mobilidade Urbana (FMU), é: essa ‘cirurgia vascular’ curará a doença sistêmica que aflige a cidade ou será apenas um tratamento paliativo?
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Assista à opinião do conselheiro da área da Saúde | Autor: Colaboração.
1 – O diagnóstico: a síndrome metabólica urbana:
A FMU estabelece que o congestionamento não é a doença em si, mas um ‘sintoma febril’ de uma patologia sistêmica crônica. Essa patologia é comparável à Doença Isquêmica Humana (DIH), que a medicina moderna reconhece como um processo sistêmico e multifacetado, e não apenas um problema de ‘encanamento entupido’.
Na cidade de Ponta Grossa, o diagnóstico aponta para uma ‘síndrome metabólica’ complexa, impulsionada por dois aceleradores patológicos principais:
– A obesidade urbana (urban sprawl): a expansão urbana descontrolada (urban sprawl) aumenta as distâncias e torna a caminhada e o transporte público inviáveis. Assim como a obesidade humana alimenta a inflamação sistêmica, o sprawl exige mais infraestrutura e gera um ciclo vicioso de dependência do carro;
– O diabetes urbano (Monomodalidade): a dependência excessiva do carro particular (monomodalidade) impõe um ‘sedentarismo compulsório’, o que, na analogia clínica, é comparado ao Diabetes Mellitus.
Juntas, essas condições ‘metabólicas’ geram um estado de ‘inflamação crônica’ na cidade, manifestado como estresse psicológico, desigualdade social e poluição ambiental.
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Vídeo explica a cidade de Ponta Grossa como um paciente | Autor: Colaboração.
2 – A intervenção: uma cirurgia macrovascular:
O investimento de R$ 95,2 milhões em Ponta Grossa é a intervenção médica de grande porte que leva o paciente para a sala de cirurgia. A Prefeitura informou que os critérios para a definição desses corredores incluem estudos técnicos aprofundados baseados no Plano de Mobilidade Urbana, análises de fluxo de tráfego, projeções de crescimento e demandas da comunidade local.
Entre as obras concluídas e em andamento, que somam aproximadamente R$ 39,2 milhões em investimentos diretos e compensatórios, destacam-se:
– Ligação Vila Cristina e Jardim Maracanã: concluída em 2023, com investimento de R$ 3,8 milhões;
– Ligação Órfãs e Boa Vista: recebeu R$ 12 milhões e permanece em execução;
– Ligação Vila DER e Colônia Dona Luiza: concluída com R$ 2,8 milhões, encurtando o caminho sem a necessidade de transitar pela BR-376;
– Ligação Vila Cipa e Residencial Campo Belo: viabilizada por medida compensatória de R$ 2 milhões, encurtando um trajeto de 5 km.
– Duplicação da av. Valério Ronchi (Uvaranas – Vila Neves): concluída com investimento de R$ 2,5 milhões.
Essas obras visam principalmente aliviar o congestionamento ao prover rotas alternativas e mais fluidez nas grandes vias, focando na ‘doença macrovascular’ – as grandes artérias viárias.
3 – O risco da ‘Hipótese da Estenose Urbana’:
O grande risco, alertado pela FMU, é o de cair na ‘Hipótese da Estenose Urbana’: a crença paliativa de que o problema se resolve ao alargar vias ou criar mais asfalto (o ‘stent’). Essa estratégia tem um resultado previsível: a ‘demanda induzida’, onde o novo congestionamento retorna, frequentemente pior, porque a causa metabólica não foi tratada.
A discussão local reflete essa tensão entre a visão macro e a microvascular:
– Visão Macro (Desenvolvimento): o diretor de Urbanismo da Acipg, Fabiano Gravena Carlin, e a secretária de Indústria, Comércio e Qualificação Profissional, Faynara Merege, defendem a necessidade de obras de grande porte e veem os novos corredores como motores de crescimento econômico. Para a prefeita Elizabeth Schmidt, as obras geram dinamismo, induzindo um crescimento planejado e oferecendo alternativas para a mobilidade.
– O Alerta do Sprawl: o arquiteto e urbanista, Henrique Wosiack Zulian, alerta que, se essas novas vias servirem apenas para ‘estimular a ocupação de áreas rurais’; elas se tornam ‘vetores de expansão descontrolada’. Metaforicamente, isso seria como ‘liberar a dieta do paciente para mais gordura e açúcar’ após uma cirurgia de ponte de safena, alimentando a própria ‘obesidade’ (o sprawl) que causou a doença.
4 – A falha crítica: a microdisfunção urbana:
Para que o investimento seja uma cura, e não apenas um paliativo, é preciso que ele se concentre em reconstruir a ‘microcirculação’ da cidade, pois a patologia mais grave reside na ‘microdisfunção urbana’ (MDu).
A MDu, análoga à Disfunção Microvascular Coronária (DMC), é a falha na conectividade local, que afeta as arteríolas e capilares da cidade. Ela se manifesta como problemas de conectividade de ‘primeiro/último quilômetro’, falha na integração modal e falta de resiliência.
Se a microcirculação estiver deficiente, a cidade se torna suscetível ao fenômeno de ‘no-reflow’ urbano. Na medicina, no-reflow ocorre quando, mesmo após a desobstrução da artéria principal, o sangue não retorna ao tecido porque a microcirculação está danificada. Na cidade, isso significa que, após a resolução de um grande engarrafamento (o ‘infarto urbano’), o caos persiste porque a resiliência da cidade é zero e as vias locais não conseguem absorver o fluxo.
5 – A prescrição para a cura e resiliência:
Um investimento de R$ 95,2 milhões é uma oportunidade ímpar. A cura sistêmica exige que o foco seja deslocado do tratamento da ‘aterosclerose’ (grandes avenidas) para a cura da ‘diabetes (dependência do carro) e da ‘obesidade’ (expansão urbana).
A verdadeira cura passa pela reconstrução da microcirculação para que esses corredores não sejam apenas artérias para carros, mas ‘capilares que promovam a resiliência e a saúde de todo o organismo’.
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Vídeo faz um questionamento sobre os ‘corredores viários’ | Autor: Colaboração.
Como o urbanista Henrique Wosiack Zulian prescreve, para que o investimento promova a saúde e o bem-estar da população, é essencial que os projetos incluam:
– Passeios acessíveis, iluminação e arborização, garantindo conforto e segurança aos pedestres;
– Ciclovias integradas às novas ligações e aos terminais de transporte, promovendo uma mobilidade verdadeiramente democrática e ativa.
Em última análise, a FMU sugere que a política urbana deve transitar da engenharia paliativa reativa (construir mais estradas) para uma abordagem de saúde pública preventiva. O sucesso dos corredores de Ponta Grossa não será medido apenas pelo tempo de deslocamento dos motoristas, mas por sua capacidade de induzir um sistema circulatório urbano que seja intrinsecamente resiliente, eficiente e promotor ativo da saúde. Então, para que seja uma cura, esses corredores não podem ser apenas vias de tráfego; precisam ser artérias de vida, promovendo uma mobilidade democrática e, acima de tudo, saudável“.
CONSELHO DA COMUNIDADE
Composto por lideranças representativas da sociedade, não ocupantes de cargo eletivo, totalizando 14 membros, a iniciativa tem o objetivo de debater, discutir e opinar sobre pautas e temas de relevância local e regional, que impactam na vida dos cidadãos, levantados semanalmente pelo Portal aRede e pelo Jornal da Manhã, com a divulgação em formato de vídeo e/ou artigo.
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