O estudo do Banco Central confirma o óbvio: o produtor foi espremido por juros altos, preços em queda e políticas tardias. A inadimplência recorde não é acidente, é consequência.
O estudo apresentado pelo Banco Central à Comissão de Agricultura do Senado apenas oficializou aquilo que o campo já gritava há meses: o modelo de financiamento rural do Brasil quebrou. A inadimplência recorde não é um fenômeno isolado, nem uma surpresa técnica. É o resultado direto de decisões políticas equivocadas, da negação da realidade e de uma economia que penaliza justamente quem produz.
Os números falam por si. No primeiro trimestre de 2025, a inadimplência entre pessoas físicas no crédito rural chegou a 7,9%. Entre os grandes produtores do Centro-Oeste, Paraná e São Paulo, passou de 10,7%. No Banco do Brasil, a taxa saltou de 0,96% em 2023 para 5,34% em 2025, um aumento de 456%. No Rio Grande do Sul, devastado por extremos climáticos, três em cada dez operações estão comprometidas.
E o mais simbólico: 74% dos inadimplentes nunca haviam atrasado uma parcela antes. Isso desmonta a narrativa de “má gestão individual”. O problema não está no produtor, está no sistema.
O dado mais grave do estudo é este: Quem financia 100% do custeio teve prejuízo médio de 2,6% na safra 24/25.
Ao mesmo tempo:
- Arrendatários sem financiamento lucraram 14,8%.
- Proprietários tiveram margens entre 22,6% e 35,7%.
Isso mostra que o Brasil criou um paradoxo cruel:
só dá lucro para quem não precisa de crédito. Quem depende de financiamento afunda.
O crédito rural, que deveria sustentar o crescimento, virou fator de quebra.
A equação que destrói o fluxo de caixa está formada:
- Juros elevados por tempo excessivo (Selic alta, crédito comercial ainda mais caro).
- Preços das commodities despencando — A rentabilidade da soja caiu 36,7%, no milho 92%.
Custos de produção subindo com fertilizantes, logística e arrendamento pressionando margens. Nessas condições, não se trata de “risco de mercado”: é uma armadilha econômica fabricada.
O produtor é o primeiro elo a sangrar. Mas não é o único:
- Revendas reduzem vendas e crédito interno.
- Cooperativas assumem inadimplência e alongam prazos perigosamente.
- Bancos fazem provisões bilionárias, e cortam novas linhas.
- O país arrisca diminuir sua capacidade de produzir na safra 2025/26.
A rachadura é estrutural. E, no limite, afeta o superávit comercial, que depende do agro para existir.
O Banco Central fala em “reavaliar equalização” e recomendar renegociações mais rígidas.
Mas o problema não é burocrático; é estratégico. O governo demorou para agir, o Congresso ignorou alertas técnicos e o BC restringiu renegociações justamente quando o produtor mais precisava delas.
A MP 1314, recém-lançada, tenta reorganizar dívidas, mas chega tarde e com adesão baixa. O Brasil quer um produtor competitivo no mundo, mas o trata como consumidor de crédito caro e pagador de crises fiscais. Não há agro resiliente com juros incompatíveis com a atividade agrícola.
A inadimplência recorde não é acidente. É consequência. Consequência de um país que exige produtividade europeia com infraestrutura africana; que quer alimentos baratos, câmbio valorizado e crédito caro; que transfere sua instabilidade fiscal para o bolso do produtor.
O estudo do Banco Central não revela um problema. Revela um fracasso coletivo de política econômica. E o alerta final: se o Brasil não reorganizar o crédito rural com urgência, juros, seguro, hedge e arrendamento, em 2026 pode registrar a maior quebradeira agrícola desde os anos 1990.
O campo está dizendo: “a conta não fecha”. E quem insistir em ignorar isso, cedo ou tarde, vai pagar a fatura, junto com o país inteiro.


*Miguel Daoud é comentarista de Economia e Política do Canal Rural
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