Vinte e um de dezembro de 2024. O estádio em Việt Trì, no norte do Vietnã, parecia pequeno para tanta emoção. Quase 17 mil torcedores vestidos de vermelho pulsavam em uníssono quando Nguyễn Xuân Son estreou pela seleção, carregando no peito a esperança de um povo.
O roteiro não poderia ser mais perfeito: vitória por 5 a 0 sobre Mianmar, dois gols e duas assistências do atacante.
Era a estreia de um sonho que ele nunca ousou sonhar. Ou melhor: que Rafaelson, menino de Pirapemas, no interior do Maranhão, jamais poderia imaginar. Ali começava a se escrever uma das histórias mais improváveis e arrebatadoras do futebol asiático
O herói que tombou em campo
O conto de fadas, no entanto, logo virou drama. Ídolo no país, naturalizado por clamor popular, Rafaelson comandava a seleção na final da Copa do Sudeste Asiático. Contra a Tailândia, o Vietnã carregava a vantagem de 2 a 1 do jogo de ida, com sete gols do brasileiro no torneio.
Aos 32 minutos, com o placar em 1 a 1, o camisa 12 avançou pela direita, driblou o marcador e cruzou com força. Mas ao apoiar o pé, o gramado o traiu. Tíbia e fíbula se romperam em um estalo seco. O estádio emudeceu. O herói caía diante de milhões.
“Comemorei o título no hospital. Estava assistindo ao jogo com minha esposa, torcendo para que acabasse logo e fôssemos campeões”, relembra, ainda emocionado.
O Vietnã venceu por 3 a 2 e ergueu apenas o terceiro troféu de sua história no torneio. Mas, para muitos, a imagem inesquecível não foi a volta olímpica — foi o choro de Rafaelson na maca, levado direto para o hospital.
O dia em que o Vietnã ganhou um novo filho
Oito meses depois, em Salvador, entre fisioterapia e treinos leves, conversou com a ESPN para refazer na memória cada passo da jornada.
“Minha chegada foi um pouco assustadora. Fui para um país que não era tão desenvolvido no futebol. Os campos eram horríveis, a logística era muito complicada. A princípio falei que não ia ficar muito tempo”.
Chegou ao Vietnã no fim de 2019, contratado pelo Thep Xanh Nam Dinh. Tinha apenas 23 anos, mas já um currículo de cicatrizes. Cria da base do Bahia, cresceu no Vitória. Viveu a dor de uma acusação injusta de adulteração de idade, desmentida tempos depois.
Viajou ao Japão para defender o Vegalta Sendai em busca de disciplina, mas uma fratura no quinto metatarso o tirou de campo por uma temporada inteira. Conheceu a neve da Dinamarca com o Naestved e a rejeição visceral ao frio.
O Vietnã surgiu como uma aventura. E virou destino.
“Quem quer, se adapta. Não é o Vietnã que tem que se adaptar a nós, nós precisamos nos adaptar ao Vietnã”.
Essa frase resume muito mais que uma mudança de país: revela a mentalidade que transformou Rafaelson em Nguyễn Xuân Son.
O país que renasceu da guerra
No Vietnã, futebol é paixão, mas também é identidade. A ferida da guerra contra os Estados Unidos, que matou mais de um milhão de vietnamitas entre 1955 e 1975, ainda pulsa na memória coletiva. A nação que se reconstruiu sobre escombros valoriza como poucos a união.
“É um país muito unido. Quando eu falo em patriotismo, falo em união entre eles. Tudo que você faz pelo Vietnã, pelo povo vietnamita, você é abraçado por eles”.
O brasileiro entendeu cedo essa lógica. Aprendeu o idioma, adaptou-se à comida, abriu-se para a cultura. Hoje, sente nas ruas de Nam Dinh o peso de ser mais que um jogador.
“Às vezes parece que eu nasci lá”, confessa.
O impacto no futebol local
Seu sucesso foi instantâneo quando chegou, mesmo em meio à pandemia de COVID-19, que resultou em breve passagem pelo Nam Dinh. Depois, vieram SHB Da Nang e Topenland Binh Dinh, até retornar ao Nam Dinh, onde atua novamente hoje.
No total, são 120 jogos no futebol vietnamita, com 90 gols e 15 assistências. Números de artilheiro que o colocam entre os maiores estrangeiros da história da liga.
Nos últimos anos, o Campeonato Vietnamita tem atraído cada vez mais estrangeiros, principalmente brasileiros. Segundo o CIES Football Observatory, 80 jogadores deixaram o Brasil rumo ao Vietnã entre 2020 e 2025.
Não há dúvidas de que o sucesso de Rafaelson colaborou com esse movimento, assim como os salários bastante atrativos. Clubes como o Thep Xanh Nam Dinh, sustentados por empresários ricos, pagam quantias equivalentes às da primeira divisão do futebol brasileiro — embora a média da liga seja semelhante à Série B.
Ídolo, pai e cidadão vietnamita
Hoje, o atacante é mais que jogador. É pai de dois meninos vietnamitas, de dois e quatro anos. Tornou-se celebridade nas ruas de Nam Dinh, apesar da timidez.
Em março, a consagração: diante da elite política e cultural reunida na Hanoi Opera House, Rafaelson foi coroado “Esportista do Ano”.
“Esse reconhecimento nada mais é do que tudo que entreguei para o país, ao futebol vietnamita. Eles me devolvem diariamente, quando vou ao shopping, ao supermercado. Sempre me agradecem, dizem ‘obrigado por tudo que você fez pelo meu país’. Isso me deixa muito feliz”.
A missão de um Messias improvável
De volta aos treinos no Nam Dinh, Rafaelson sabe que o maior desafio ainda está por vir: levar o Vietnã, pela primeira vez na história, a uma Copa do Mundo.
“Nosso maior objetivo é se classificar para 2030”.
O contrato renovado até 2031 é a garantia de que o sonho pode continuar vivo — e de que há tempo para torná-lo realidade. Um sonho que começou no interior do Maranhão e atravessou oceanos.
Hoje, entre pratos de Bún Chả e tigelas fumegantes de Phở, Rafaelson se divide entre ser pai, atleta e símbolo nacional.
“O povo vietnamita me abraçou. Sou muito feliz no país, está no meu coração para sempre. Amo muito o Vietnã”.
E os vietnamitas, unidos por sua própria história de resistência, amam Nguyễn Xuân Son.