O ANO ERA 2011. A NBA enfrentava seu último locaute, impasse entre a associação de jogadores e os donos dos times sobre as regras, principalmente financeiras, dos anos seguintes.
Sem poder utilizar a estrutura das franquias da NBA enquanto o locaute não terminasse, Brandon Payne, treinador de basquete na Carolina do Norte, trabalhava com jogadores do Charlotte Hornets, quando Stephen Curry apareceu.
“Ele estava se recuperando de uma lesão no tornozelo. Eu mostrei a ele algumas coisas que poderíamos fazer enquanto ele se reabilitava, que não colocariam pressão sobre o tornozelo. Ele gostou dos treinamentos e naquela noite me ligou perguntando se poderia voltar na manhã seguinte. Trabalhamos juntos desde então”.
A parceria deu certo. Em pouco tempo, o jogo de Curry – e do Golden State Warriors – se transformou na dinastia que dominou a NBA de 2014/15 a 2021/22, com quatro títulos e dois vices no período.
“Trabalhamos na criação de espaço, nas tomadas de decisões, as bases de tudo o que temos hoje vieram dali. Tem sido uma constante evolução desde então”.
Brandon Payne esteve em São Paulo para um evento da Under Armour, fornecedora esportiva de Curry, e concedeu uma entrevista exclusiva à ESPN.
STEPH NASCEU EM OHIO, Cleveland, mas cresceu em Charlotte. Seu pai, Dell Curry, é ídolo dos Hornets, onde jogou de 1988 até 1998. Até hoje é líder em jogos (701) e segundo em pontos (9.839) na história da franquia.
O ensino médio foi feito no Charlotte Christian, enquanto a universidade também foi perto de casa: Davidson, na região metropolitana de Charlotte. Uma escolha conservadora, sem muita tradição na modalidade. Até então, Davidson tinha enviado apenas cinco atletas para a NBA.
Mas foi o suficiente para Curry brilhar. Em três anos de Davidson, teve médias de 25,3 pontos por partida, e o já tradicional aproveitamento absurdo na linha dos três pontos: 41,2% de acerto.
No segundo ano, foi eleito para o segundo time ideal dos EUA. No terceiro, além de levar a universidade para as quartas de final do March Madness, entrou no time ideal da temporada no basquete universitário.
Mais do que o suficiente para chamar a atenção dos olheiros da NBA. Em geral, as avaliações reconheciam a capacidade de pontuação e arremesso de Curry, mas colocavam inúmeras ressalvas quanto a seu físico, uma vez que era muito magro e baixo. Além disso, o fato de Curry não ser um “armador tradicional”, que cadenciava o jogo e priorizava o passe, também causava preocupações.
Mas o Golden State Warriors apostou no calouro e o selecionou na 9ª posição do Draft de 2009.
Curry já chegou como titular da equipe. No ano de novato, teve 17,5 pontos, 5,9 assistências, 4,5 rebotes e 1,9 roubo de bola por partida. O aproveitamento do perímetro, embora com um volume pequeno em comparação aos anos seguintes, já estava lá: 43,7%. Ficou em segundo lugar no prêmio de calouro do ano, atrás de Tyreke Evans, então no Sacramento Kings.
A temporada 2010/11 foi de crescimento nos números e desenvolvimento dentro da equipe. Ao fim dela, conheceu Brandon Payne, dando início a parceria que dura até hoje. Mas logo no início de 2011/12, Steph ficou fora de muitos jogos por conta dos problemas no tornozelo que sempre o acompanharam. Antes da metade da temporada, foi afastado para fazer uma cirurgia e resolver os problemas de uma vez por todas. E aí tudo mudou.
“TIVEMOS UMA PRÉ-TEMPORADA INTEIRA DEPOIS DA CIRURGIA. Foi aí que começamos a trabalhar de verdade”.
Payne não esconde a satisfação em ter feito parte do processo de recuperação e transformação do Curry. E também não poupa elogios ao camisa 30 dos Warriors.
Quando Curry voltou às quadras, em 2012/13, o GSW era outro. O veterano Monta Ellis, grande nome da equipe até então, fora trocado. Assim, a bola foi de vez para as mãos de Steph. E a NBA mudou para sempre.
“O que o tornou tão único foi utilizar o arremesso como a ameaça primária, para facilitar todas as outras. Ele é capaz de jogar a partir disso melhor do que qualquer outro que já pisou numa quadra de basquete. Ele é capaz de chegar até a cesta e tomar decisões muito rápidas, faz todo mundo do time se tornar uma ameaça”.
Os números mostram uma evolução quase instantânea. Já em 2012/13, Curry subiu para 7,7 tentativas de três pontos por partida, contra apenas 4,7 na temporada anterior. Os acertos subiram de 2,1 para 3,5, maior marca da liga naquele ano. O aproveitamento, mesmo com o aumento do volume, foi o mesmo: 45%.
O suficiente para Curry aparecer pela primeira vez nas conversas sobre MVP. Os Warriors subiram para 47 vitórias, melhor marca da franquia desde 2007, e voltaram aos playoffs, caindo na segunda rodada para o San Antonio Spurs de Gregg Popovich.
Na temporada seguinte, 51 vitórias, mas playoffs decepcionantes com uma queda para o LA Clippers logo na primeira rodada.
Era hora de mais uma mudança.
UM PASSO ATRÁS. Por mais revolucionário que Stephen Curry seja, ele não foi o único agente da mudança. As fortes defesas da década de 2000 já levavam diversos treinadores a tentarem novos estilos de ataques para se destacarem na liga. O principal deles foi Mike D’Antoni, técnico do histórico Phoenix Suns de 2002 a 2008, considerado o primeiro coach a utilizar a fundo as estatísticas avançadas na NBA.
Nos Suns, popularizou a estratégia que ficou conhecida como run and gun, priorizando ataques muito rápidos, com poucos segundos de posse, com certas similaridades ao ritmo frenético da década de 1960, ou ao ‘Showtime Lakers’ de Magic Johnson e companhia nos anos 1980. Mas com atualizações, incluindo uma predileção pelos arremessos do perímetro. Anos depois, no Houston Rockets de James Harden, que já era conhecido pelo alto volume do perímetro, criou um elenco que era uma verdadeira máquina de arremessos, rivalizando justamente com os Warriors.
E falando de Golden State, Don Nelson, treinador da franquia de 2006 a 2010 (após longa passagem nos anos 1990), já tentava emplacar um estilo mais fluido que o da ‘era da bola morta’ do fim dos anos 2000, de jogo mais lento e pontuação baixa. Mas como os Warriors não tiveram sucesso, não pareceu uma grande ideia a ser seguida, uma constante na carreira de Don Nelson. Só que embora modificado, o estilo não foi completamente abandonado por Mark Jackson de 2011 a 2014.
Mas quando Steve Kerr chegou à Oakland (antiga base dos Warriors) em 2014, ele tratou de resgatar a influência do run and gun para Stephen Curry e companhia. A contratação do brasileiro Leandrinho Baborsa, inclusive, teve esse objetivo. O armador foi um dos grandes nomes dos Suns de Mike D’Antoni na década anterior, e desembarcou na California para ‘ensinar’ o elenco a jogar o mais rápido possível.
Neste meio tempo, Klay Thompson e Draymond Green chegaram ao time via Draft, e o resto é história.
O espaçamento
1:47
Treinador pessoal de Curry fala da mudança de estilo na NBA por conta de Steph: ‘é um jogo muito mais interessante agora’
Veja a NBA no Disney+
“O FATO DE QUE QUANDO ELE tem a bola nas mãos os outros jogadores se tornam uma ameaça, porque ele pode encontrar todos eles, força as defesas a cobrir toda a quadra, abrindo o jogo para todos. A gravidade, a capacidade de atração defensiva que ele tem em quadra é incomparável a de qualquer jogador da história. Isso não apenas o torna ótimo, mas faz todos seus companheiros melhores. É isso que o torna um chutador único, a capacidade de tornar todos ao redor dele melhores”.
A ideia de que tornar os companheiros melhores é benéfico para todo o time é óbvia. Mas Brandon Payne vai além. Curry fez (e faz) esta boa boa influência de lugares diferentes da quadra em comparação aos destaques de então.
“O fator chave é que ele ‘esticou o chão’ (aumentou o espaçamento e a zona de ações na quadra). Quando você tem jogadores que agora estão chutando de cada vez mais longe, e aumentando a eficiência desses chutes longos, isso aumenta o espaço da quadra que a defesa precisa cobrir. Isso mudou todo o esporte. Mudou como os técnicos pensam o espaçamento, mudou como pensam a defesa, porque antes precisavam defender de 7 a 9 metros da cesta. Agora precisam defender 10, 12 metros. Isso mudou como tudo acontece na quadra, ele mudou toda a geografia do basquete. E eu acho que pra melhor. É muito mais interessante agora. Acho que o jogo é muito mais fluido que antigamente,” explica o treinador.
Em 2014/15, primeira temporada de Steve Ker nos Warriors, Curry foi MVP pela primeira vez, e GSW, campeão. Mas curiosamente, Steph ainda arremessava mais para dois pontos que para três. Por pouco, mas ainda prevaleciam os arremessos mais próximos. A virada chegou no ano seguinte, em 2015/16. Desde então, os chutes do perímetro sempre foram mais frequentes que os para dois pontos.
E não foram as bandejas que diminuíram. Mas sim os chutes de média distância, que aos poucos ficaram cada vez mais raros no jogo de Curry, e também de toda a NBA. A distância média dos arremessos também foi crescendo: de 5,2 metros em 2014/15, para 6 metros em 2024/25.
“Algumas pessoas dizem que ele ‘arruinou o jogo.’ Ele não arruinou o jogo. Ele deixou muito melhor, deixou muito mais divertido de assistir. Se você acha que o jogo é chato hoje, vá assistir jogos da década de 1980, 1990. Veja como era comparado com o que vemos agora. Jogávamos pick’n roll em um lado da quadra e tínhamos outros três jogadores lá do outro lado. Éramos acostumados a ter dois pivôs pesados sob a cesta. Era tudo muito congestionado. Não havia espaço para ser criativo”, disse.
“Agora a quadra está mais aberta. Temos a possibilidade de carregar a bola, temos a capacidade de de levar a bola de uma ponta a outra. É muito mais fluido. A pontuação subiu. O atleticismo subiu. A habilidade com a bola subiu, a tomada de decisões melhorou. Todas essas coisas estão melhores porque o jogo está mais aberto e as formações mais espaçadas. Isso torna tudo muito mais interessante para os fãs”.
A longevidade
AOS 37 ANOS, Curry vai para a 17ª temporada na NBA, todas pelos Warriors. E nada indica que Steph esteja em um declínio físico, quiçá técnico. O ‘brinquedinho assassino’ teve um raro ano abaixo dos 40% de aproveitamento do perímetro (39,7%), mas com médias de 24,5 pontos, 6 assistências, 4,4 rebotes e 1 roubo de bola. Ainda apareceu nas votações para MVP e foi eleito para o segundo time ideal do campeonato.
Seja pela idade, seja pela longevidade na liga, Curry segue colhendo frutos impressionantes e ainda é ponto focal das defesas adversárias. Por mais que sempre tenha uma taxa razoável de jogos perdidos por ano (só fez 70 ou mais partidas em duas últimas oito temporadas regulares), consegue se manter saudável e sem restrições de minutos.
Para Payne, o exemplo vem de casa.
“Isso vem dele ver o Dell Curry fazer tudo aquilo e jogar 16 anos na NBA. Então ele tem essa base de conhecimento do que é preciso no dia-a-dia para ser um grande jogador e para ser efetivo todos os dias”.
Não é bem verdade que Curry não utiliza o físico para ser um grande jogador. Boa parte de seu mérito – e dos Warriors – vem das incessantes movimentações sem a bola, que confundem praticamente todas as defesas adversárias, o que requer muito fôlego e mudanças rápidas de direção. Ainda assim, com a bola Steph não é tão explosivo quanto Giannis Antetokounmpo, Russell Westbrook e LeBron James, por exemplo. Por isso, também consegue aumentar seu tempo como estrela da liga.
“Tudo o que fazemos desde 2011 têm sido sobre estender o tempo que ele pode jogar com eficiência. Seja pelos processos físicos que sempre fazemos nos aquecimentos, em termos de força, em termos de como lidar com possíveis lesões, ou por como lidamos com os processos de decisões de trabalho neurocognitivo desde o começo, porque é isso que pode superar qualquer tipo de queda física”.
Além disso, o ‘armador franzino e de pouca estatura’ que aparecia nos scouts também está se tornando um defensor cada vez melhor. Se ainda não é a muralha no um contra um, como Dyson Daniels e Alex Caruso, Curry tem feito o suficiente para não ser considerado o grande alvo dos ataques adversários, o que o faria gastar muito mais energia na defesa que no ataque. E principalmente, tem aumentado a leitura de dobras e coberturas, facilitando a defesa coletiva.
“Ele é um defensor muito melhor do que as pessoas dão crédito. É claro, na NBA atual ninguém vai anular o outro. Os jogadores são bons demais no ataque. Mas em termos de conceito de defesa, ele é tão bom quanto possível. Ele é capaz de identificar as ações. Ele é capaz de encerrar as jogadas adversárias antes que cheguem até ele (na defesa individual)”, analisa Payne.
Além disso, a capacidade de leitura de jogo também transformou Steph em um dos melhores screeners de toda a liga (jogador que faz a parede no pick’n roll), usando sua gravidade para atrair os dois marcadores e criar espaços para companheiros.
2025/26: de volta ao topo da NBA?
EM 2024/25 OS WARRIORS tiveram muitos altos e baixos. Um início empolgante, com rotação robusta, deu lugar a um meio de temporada morno, com uma sequência preocupante de derrotas. Tudo melhorou quando Jimmy Butler chegou ao time: a sequência passou a ser de vitórias, e Golden State chegou aos playoffs após passar pelo play-in. Não teve tantas dificuldades para vencer o Houston Rockets, segundo colocado da Conferência Oeste, e caiu para o Minnesota Timberwolves em série que Curry se lesionou.
Para 25/26, o clima é outro. Com Steph, Jimmy Butler e Draymond Green desde o início da temporada, os Warriors esperam ter maior estabilidade e, se possível, classificação direta aos playoffs. E se a temporada passada mostrou algo, é o quanto Curry também é capaz de melhorar ao lado de Jimmy e Green, o que, em tese, deve possibilitar números ainda melhores ao astro e uma campanha ainda mais animadora na pós-temporada.
“Os Warriors irão muito bem. Al Horford foi uma grande aquisição, e agora eles terão 82 partidas com Jimmy Butler. Isso vai ajudar demais. Eles também pegaram o Seth Curry, será legal ter os dois irmãos no mesmo elenco. Eles têm a experiência campeã, a experiência necessária para saber como lidar com os 82 jogos com um elenco um pouco mais velho, se colocarem nos playoffs e estarem em condições de irem longe,” profetiza Payne.