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o país onde o voto vale mais que a produção

O governo federal anunciou uma mudança estrutural no sistema de crédito imobiliário, permitindo que parte dos depósitos compulsórios da poupança, hoje direcionados em 65% ao financiamento habitacional, seja liberada para ampliar o crédito e reduzir os juros da casa própria.

A medida é tecnicamente interessante e politicamente inteligente: fala diretamente com milhões de brasileiros urbanos, de diferentes classes sociais, que sonham com o teto próprio.

Mas revela também o caráter eleitoral das decisões econômicas no Brasil. Enquanto o governo reforma o crédito habitacional para ganhar votos, o crédito rural segue travado, mesmo sendo o setor que sustenta o emprego, as exportações e o superávit da balança comercial.

O Brasil rural é composto por cerca de 77% de pequenos produtores familiares e 23% de produtores médios e grandes. Esses 23% respondem por aproximadamente 75% do valor total da produção agropecuária — ou seja, são eles que garantem o abastecimento, o saldo comercial e a geração de renda no interior.

Mas há um problema: esses produtores representam poucos votos. São numericamente minoritários, dispersos geograficamente e com baixo impacto eleitoral. Em termos políticos, não elegem governos. E, por isso, ficam fora das grandes reformas econômicas.

No outro extremo, o crédito habitacional fala com dezenas de milhões de famílias urbanas — um público que decide eleições. Liberar compulsórios da poupança e ampliar o crédito para moradia é mais que política econômica: é estratégia eleitoral.

Os 23% de produtores médios e grandes, que respondem pela maior parte da produção agropecuária, enfrentam hoje juros proibitivos, limites travados e ausência de crédito novo.
Negociam dívidas, mas não conseguem crédito adicional para operar, o que compromete o ciclo produtivo.

A diferença é brutal:

  • O crédito urbano é reformado por decreto;
  • O crédito rural é remendado por renegociação.

E o resultado é previsível: o Brasil financia o consumo, mas estrangula a produção. Se o governo realmente quisesse equilibrar o jogo, aplicaria ao campo a mesma lógica usada na habitação:

Liberar parte dos depósitos compulsórios à vista, que hoje ficam imobilizados no sistema financeiro, para irrigar crédito com juros menores e prazos mais longos aos produtores rurais.

Essa medida, tecnicamente viável e de impacto macroeconômico baixo, permitiria:

  • Aumentar a liquidez para o crédito rural sem depender de novos subsídios fiscais.
  • Reduzir os spreads bancários no financiamento agrícola, que hoje superam 20% ao ano.
  • Fortalecer os 23% de produtores médios e grandes que sustentam a produção e as exportações, mas estão sem acesso a capital competitivo.
  • Gerar efeito multiplicador sobre emprego, logística e renda nas regiões do interior.

Em resumo: o governo poderia transformar uma decisão política em política de Estado, usando os depósitos à vista como instrumento de desenvolvimento rural, da mesma forma que faz com a poupança urbana.

A diferença não está na economia — está nas urnas. No Brasil, o crédito é concedido conforme o peso do eleitor, não o peso da produção.

Nas cidades, a habitação é pauta eleitoral de massa: Cada contrato assinado é uma família satisfeita, um voto potencial. No campo, o crédito é tema técnico, sem glamour nem palco, um investimento silencioso que não rende manchete nem voto.

Enquanto isso, o país segue dependente de exportações do agro, mas incapaz de oferecer crédito barato a quem produz. É o paradoxo do Brasil moderno: o campo sustenta o PIB, mas a cidade decide o orçamento.

Crédito para votos ou crédito para produção?

A liberação de compulsórios da poupança para o crédito imobiliário é uma medida de impacto político imediato. Mas o verdadeiro desafio é reformar o crédito rural, permitindo que os depósitos à vista financiem com juros competitivos os 23% de produtores que respondem por 75% da produção nacional.

O Brasil precisa escolher se quer um crédito que ganha eleições ou um crédito que gera riqueza. Enquanto o governo financiar votos e esquecer a produção, continuará faltando coerência entre o discurso de crescimento e a prática da política.

Afinal, de nada adianta construir casas se faltar crédito para quem produz o alimento que vai dentro delas.

Miguel DaoudMiguel Daoud

*Miguel Daoud é comentarista de Economia e Política do Canal Rural


Canal Rural não se responsabiliza pelas opiniões e conceitos emitidos nos textos desta sessão, sendo os conteúdos de inteira responsabilidade de seus autores. A empresa se reserva o direito de fazer ajustes no texto para adequação às normas de publicação.

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