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‘Olhai os Lírios do Campo’, o livro que deixa estrangeiros na bota

Confesso que alguns autores nacionais, clássicos, não despertam um interesse imediato em mim quando leio as resenhas e sinopses de seus aclamados livros. Um deles era Erico Veríssimo, nada pessoal, ele apenas não era daqueles brasileiros que me inspiravam a nadar em suas represas literárias como é o caso José de Alencar, Machado de Assis e Guimarães Rosa, por exemplo, cujas obras sempre, desde a juventude, davam-me certa “água na boca”. Essa questão de interesse literário, por vezes, cai no campo do subjetivo, quase no subconsciente, mas, fato é que Veríssimo não era um desses que eu buscava para ler quando a vez na fila de leitura era de algum livro clássico nacional.

No entanto, exatamente por esse motivo — o de não me interessar por suas obras num primeiro instante —, eu me forcei a ler Olhai os Lírios do Campo. Meio masoquista, meio virtuoso, essa mania de me forçar a ler coisas que, num primeiro instante, não me interessam, já me deu muitas alegrias e, por vezes, rematadas decepções, ensinou-me lições preciosas sobre preconceitos literários e, quase na mesma proporção, já provou que tais preconceitos literários, por vezes, têm razão de ser.

“Querem ver a habilidade roteirística de um escritor, veja como ele consegue, em poucas aparições, tornar uma personagem completamente para toda uma obra”

Pedro Henrique Alves

Olhai os Lírios do Campo foi um dos que me trouxe alegrias, sem dúvida. Logo nas primeiras páginas, eu me vi preso na descrição fluida e nada empolada de Eugênio, o protagonista. A exposição dos personagens por Veríssimo, aliás, foi uma das coisas mais gratificantes que li na literatura brasileira até hoje. Ao contrário de muitos autores que, na busca de dar penetração em descrições de ambiente e personagens, pesam na robustez linguística, confundindo assertividade de informações com esnobismo erudito, Veríssimo orquestra uma união quase perfeita de profundidade, cadência e economia das palavras.

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O exemplo maior aqui é a apresentação de Olívia, par romântico de Eugênio, a segunda personagem mais importante da trama — quiçá, a primeira, em algumas leituras críticas —, apesar de ser a espécie de combustível de toda a trama do autor brasileiro, suas aparições e falas ombreiam, ou até ficam um pouco abaixo das aparições, por exemplo, de Dr. Seixas, amigo cético e pessimista de Eugênio. Querem ver a habilidade roteirística de um escritor, veja como ele consegue, em poucas aparições, tornar uma personagem completamente para toda uma obra.

Um pouco da história do livro

Uma capa de edição antiga do livro Olhai os lírios do campo, de Erico Verissimo | Foto: Reprodução/Amazon
Uma capa de edição antiga do livro Olhai os lírios do campo, de Erico Verissimo | Foto: Reprodução/Amazon

O romance gira em torno de Eugênio, um menino pobre que é assombrado, desde a mais tenra infância, pelo o destino traçado pela pobreza e mesquinhez.  A fim de fugir do determinismo social, ele se encerra num curso de medicina que, mais do que por vocação ou amor, ele o fez somente para ter um título e a possibilidade de ascender economicamente. Sua vida como doutor, logo no início de sua prática médica, mostra-se frustrante e até nauseante, as descrições do cheiro dos pobres, e das literalmente “entranhas da miséria” de seus pacientes, demonstram como Eugênio via na medicina uma espécie de tortura necessária ao tão esperado elevador econômico.

Ainda na faculdade, por sua via, ele encontra Olívia, uma moça um tanto quanto fora dos padrões de beleza, segundo narrador, nada orientada para os vestidos e saltos altos da moda de então, dona de um estoicismo cristão, temperado com uma consciência social-democrata que faria qualquer Fernando Henrique Cardoso marear os olhos. Olívia logo se torna amiga e amante de Eugênio, o qual, durante uma viagem dessa ao exterior, conhece Eunice, uma mulher da alta sociedade que pode propiciar a Eugênio tudo que ele sempre buscou: status social, dinheiro, conforto e uma vida comum na aristocracia sulista.

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Pararei por aqui, pois vocês sabem que meu código de honra não permite mais do que 50% de spoilers, mas adianto já que Olívia voltará buchuda do exterior, e que Eugênio, aos poucos, deixará de ser um mesquinho carreirista da vida para ser o homem comum mais admirável que muitos heróis por aí.

O pano de fundo da história

Revolução e 1930Revolução e 1930
Revolução e 1930: movimento citado em obra de Erico Veríssimo | Foto: Reprodução/Brasil Escola

O livro tem como pano de fundo a Revolução de 1930, além disso, Erico com certeza trouxe como agenda do roteiro uma costura social-democrata para seus dois personagens principais — ele mesmo o era. É notável, todavia, que tanto Olívia quanto Eugênio, na segunda parte da obra, são guiados por uma narrativa política que dá o tom aos diálogos, à percepção da realidade descrita e aos pensamentos de todos os personagens envolvidos; não raro, há uma defesa consciente de uma ideia socialista aqui ou acolá.

Olhai os Lírios do Campo continua incólume, com sua original fragrância romântica e sua beleza artística popular, tudo isso sem ser maculada pela militância azeda que outros autores imputam aos seus textos”

Pedro Henrique Alves

No entanto, pouco isso importa ao final. A literatura é o espelho da realidade, é a vida de muitos em um enfoque engenhosamente recortado por um escritor. Isto é, a cola romanceada que dá sentido a uma realidade fraturada e desconexa. E como tal realidade suporta em si mesma socialistas idílicos e amores reais com fundos políticos, que nem por isso deixam de ser histórias interessantes, Olhai os Lírios do Campo continua incólume, com sua original fragrância romântica e sua beleza artística popular, tudo isso sem ser maculada pela militância azeda que outros autores imputam aos seus textos.

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O livro de Erico foi sucesso imediato já em 1938, ano de lançamento, sendo traduzido posteriormente até para o japonês e o indonésio. Nos Estados Unidos, foi lançado pela gigante editorial Macmillam, de Nova York. O livro foi um sucesso tal que os jornais brasileiros da época destacavam o esgotamento corriqueiro das edições em todo o país e, ainda nas décadas de 1950 e 1960, gozava de números impressionantes de vendas.

Análise sobre o texto de Erico Veríssimo

erico veríssimo escritor brasileiroerico veríssimo escritor brasileiro
O escritor brasileiro Erico Veríssimo | Foto: Reprodução/Acervo IMS

Seu texto se recobre de um entrelaçamento temporal atípico nos romances daqueles dias, com passado, presente e futuro se justapondo sem acanhamento, bem como de um teste regionalista no passo de Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Por isso trazia em si uma espécie de familiaridade nacional, interesse popular e outras perspectivas sociais que davam campo à sociologia universitária. O afastamento inicial da crítica especializada era um contraste notório ante a crítica popular, que amava a trama e fazia da obra um best- seller de seu gênero, em números nunca antes vistos no país.

Tais críticas especializadas acusavam Veríssimo de vulgaridade literária e adesão ao comunismo, críticas que não eram sinceras. Ainda que o calvo romancista claramente pensasse à esquerda, é fato que ele recusou os extremismos de seu tempo, tanto o nazifascismo quanto o comunismo soviético. Nos diálogos políticos da obra, fica clara em suas ideias uma comunhão entre um socialismo romantizado, inocente, com base única na crítica ao capitalismo, bem como a recusa rematada de toda forma de violência ideológica e humana.

“A suposta vulgaridade do autor, por sua via, parece-me uma daquelas críticas literárias que dispensamos a alguém quando não encontramos nada de sério a se criticar”

Pedro Henrique Alves

Como Eugênio, o protagonista, afirmou, no fim do capítulo 15, na segunda parte da obra, ao final de um debate na casa de Eunice entre os partidários do fascismo e do comunismo, “Antes de Mussolini e Stálin já existiam as estrelas e depois que eles tiverem passado elas continuarão a brilhar”. A suposta vulgaridade do autor, por sua via, parece-me uma daquelas críticas literárias que dispensamos a alguém quando não encontramos nada de sério a se criticar.

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Percebam que não falo da magnum opus de Veríssimo, O Tempo e o Vento, e é proposital. Aqui venho para falar de Olhai os Lírios do Campo e acrescentar ao meu texto mais uma análise faria este ensaio virar um livreto. Contudo, cabe uma nota sincera, a genialidade completa de Veríssimo foi derramada naqueles volumes de O Tempo e o Vento, e não nesse que hoje resenho. Por isso indico Olhai os Lírios do Campo como introdução ao autor.

Mais sobre o livro

cláudio marzo e nivea maria - adaptação de olhai os lírios do campo como novela da Globocláudio marzo e nivea maria - adaptação de olhai os lírios do campo como novela da Globo
Os atores Cláudio Marzo e Nivea Maria, durante gravação da telenovela Olhai os lírios do campo, baseado na obra de Erico Veríssimo | Foto: Reprodução/Acervo/TV Globo

É uma pena que as análises desse livro, tanto por críticos à esquerda e à direita, tenham focado em demasia na política, e não na beleza estrutural do roteiro, na habilidade explorativa da mente humana de Erico, ora, as descrições dos personagens são uma aula de romance, a construção da psicologia dos protagonistas, algo próximo a Ivan Turguêniev e seus romances mais curtos. No fim, a beleza de Olhai os Lírios do Campo está em seu estilo estrutural típico de contos ingleses do início do século 20, o que dá fluidez ao texto, alinhado a uma tecedura de romance psicológico, que transforma o livro num exame apurado do homem comum — o que me faz lembrar do estilo russo do século 19.

“A obra aqui analisada o levará a boas e profundas reflexões, trará uma calmaria esperançosa em meio às fraquezas de caráter tipicamente humanas, fraquezas essas habilmente exploradas pelo autor”

Pedro Henrique Alves

Por fim, se há em você, como havia em mim, um receio em ler Erico Veríssimo, seja por preconceito político ou qualquer outro, recomendo que dê uma chance ao escritor brasileiro. Cada linha de Olhai os Lírios do Campo vale a pena. Uma das críticas comuns a Erico, como disse no início, é de que suas obras carecem de profundidade, do que discordo com prudência.

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Com certeza a obra aqui analisada o levará a boas e profundas reflexões, trará uma calmaria esperançosa em meio às fraquezas de caráter tipicamente humanas, fraquezas essas habilmente exploradas pelo autor. Espantosamente, e digo isso com toda sinceridade, esse romance trouxe-me a sensação que comumente tenho ao final de uma obra digna de cânone — e aqui muitos críticos hão de torcer os olhos para mim, eu sei —, fiquei com aquela um tanto rara sensação de que, ao montar Eugênio, Olívia, Eunice, Acélio Castanho, Ângelo e Dr. Seixas para seu livro, Erico Veríssimo acabou mostrando ousadamente um pouco de todos nós também.

Olhai os Lírios do Campo é merecidamente um clássico popular em todos os sentidos. E, por mais que os especialistas não gostem disso, por vezes, o populacho escolhe melhor que eles.

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