Como de costume, o que acontece na Premier League serve como modelo ou exemplo para boa parte do mundo do futebol. Quando o assunto é arbitragem, também elogiamos o profissionalismo que existe no apito inglês. Aqui no Brasil, onde a arbitragem é terrível, cobramos em vão há muito tempo a profissionalização dos juízes, mas parece que nem a CBF nem os clubes, que olham apenas para o próprio umbigo e não criam uma liga independente, têm interesse em mudar esse cenário.
Na Premier League, também vemos o que há de melhor disponível em tecnologia para corrigir erros da arbitragem, com destaque para o impedimento semiautomático e a ferramenta que detecta com precisão se a bola ultrapassou ou não a linha do gol. Mesmo a CBF sendo bastante rica, com faturamento anual superior a R$ 1 bilhão, ela economiza na arbitragem e mantém uma tecnologia arcaica, como disse outro dia Abel Ferreira, o técnico português do Palmeiras.
Em quase 30 anos de carreira no jornalismo, já debati e escrevi muito sobre a arbitragem, mas fui quase sempre uma voz solitária ao tratar de um tema que é quase tão polêmico quanto uma atuação ruim de um juiz dentro de campo. Os árbitros têm um time do coração e, em alguns momentos, em alguns lances e em algumas situações, isso pode interferir de alguma forma no jogo.
Eu acredito normalmente na inocência dos juízes, embora saibamos que há casos de manipulação de resultados aqui e acolá e que cada vez mais o futebol (e o esporte como um todo) é um grande negócio que movimenta bilhões mundo afora.
Vemos sistematicamente no noticiário esportivo dúvidas sobre arbitragem que é influenciada por força de bastidores, que é caseira, que vê camisa, que tradicionalmente beneficia os chamados times grandes, os clubes com mais torcida e mídia. Isso faz parte da cultura do futebol, seja na Espanha do Real Madrid e do Barcelona, na Itália da Juventus e do Milan, na Argentina do Boca Juniors e do River Plate ou no Brasil de Flamengo e Corinthians. Na Inglaterra, a pátria-mãe do futebol e das casas de apostas, fala-se menos de arbitragem, há uma confiança bem maior na lisura das disputas, existe uma credibilidade na arbitragem que pouco é vista em outros países.
Na temporada passada, no entanto, houve questionamentos na parte de cima e na parte de baixo da tabela. Na minha opinião e na de muita gente, houve um pênalti claro para o Liverpool nos segundos finais do duelo em Anfield contra o Manchester City. O jogo, muito importante na disputa do título (o City acabou campeão com dois pontos a mais que o Arsenal, mas os Reds ainda brigavam pela taça quando aconteceu o duelo contra o time do Guardiola), estava 1 a 1 até o fim do segundo tempo. Foi então que Doku atingiu Mac Allister com um pé alto no peito dentro da área.
“Foi 100% pênalti. Eles vão encontrar uma explicação. Foi 100% falta em todas as áreas do campo e provavelmente um cartão amarelo. Todas as pessoas ao meu redor disseram ‘uau, claro’. Talvez eles possam se esconder atrás da frase não é claro e óbvio. Claro que foi pênalti, mas não o conseguimos e tudo bem”, reclamou com a tradicional simpatia o então técnico do Liverpool, o alemão Jürgen Klopp que faz falta ao futebol.
Só que houve também uma reclamação diferenciada na luta contra o rebaixamento. O Nottingham Forest acusou Stuart Attwell, árbitro de vídeo que atuou na derrota do time por 2 a 0 para o Everton (o juiz de campo era o experiente Anthony Taylor), de ser torcedor do Luton Town, contra quem brigava nas últimas posições. Três supostos pênaltis a favor do Forest (um por toque de mão e dois por faltas em Reyna e Hudson-Odoi) não foram marcados nessa partida. “Três decisões extremamente erradas, três pênaltis não dados, que simplesmente não podemos aceitar. Nós alertamos a PGMOL (associação de árbitros profissionais da Inglaterra) antes do jogo que o VAR é torcedor do Luton, mas eles não mudaram. Nossa paciência foi testada diversas vezes. O Nottingham Forest agora vai avaliar suas opções”, afirmou o clube bicampeão europeu nos anos 70 em post. A badalada liga inglesa respondeu com o seguinte comunicado:
“A Premier League ficou extremamente decepcionada ao ler os comentários feitos pelo Nottingham Forest nas redes sociais ontem após a partida contra o Everton. Observamos que a FA (federação inglesa) confirmou que investigará a declaração do clube. Nunca é apropriado questionar indevidamente a integridade dos árbitros, e a natureza desses comentários significa que a Premier League também investigará o assunto de acordo com as regras da liga.”
Eis que uma das novidades da Premier League para esta temporada é a exigência de os árbitros revelarem seu time do coração para a Associação de Árbitros da Premier League. “Vamos analisar e fazer ajustes se acreditarmos que pode haver conflito de interesses caso um juiz se declare torcedor de um time específico. Então é algo que temos que trabalhar. E, se o árbitro tiver conexões pessoais com pessoas que trabalham nos clubes, nós também avaliaremos tudo isso e levaremos em consideração na hora de nomear os juízes”, disse Howard Webb, o diretor da associação inglesa de árbitros.
A reclamação do Nottingham Forest, portanto, gerou uma investigação séria e resultou em uma mudança na forma como os árbitros são escalados para algumas partidas. Lembro que o Wolverhampton pediu o fim do VAR para esta temporada, mas foi voto único e acabou vencido nessa pedida que vai contra o futebol moderno. Os juízes são seres humanos, estão sujeitos a falhas e podem, em um julgamento, serem levados, sim, pelo seu coração. Eles precisam agora revelar seus times prediletos para seus superiores e isso não será tornado público, coisa com a qual eu também estou de acordo.
Mas, se duvidarmos do julgamento de um juiz por clubismo, também devemos duvidar dos comentários e análises de jornalistas quando tratam do time do coração? Claro que sim! E nós que estamos na imprensa somos cobrados pelos nossos posicionamentos, especialmente quando envolvem nossos clubes favoritos. Alguns na imprensa revelam abertamente suas preferências e outros ainda preferem omiti-las, mas o fato é que jornalistas não decidem os jogos, não estão dentro do campo definindo campeonatos, títulos, vagas e descensos. Um árbitro pode sim tomar uma decisão errada com base no time que ele torce ou no amigo que ele tenha em algum clube. Todos nós gostamos mais de umas pessoas do que outras. Juízes por vezes podem pegar no pé de um profissional ou passar pano para outro por uma afinidade ou admiração ou por alguma rusga ou porque simplesmente não vai com a cara daquela pessoa. Todos nós que torcemos para um time temos uma relação especial com esse clube e com pessoas ligadas a ele, muitas vezes a própria família. Natural que em algum momento isso venha à cabeça de quem vai tomar uma decisão importante.
Quer dizer que todos os árbitros são tendenciosos e parciais? Claro que não. Mas nas disputas internacionais se evita colocar árbitros de um país para apitar jogos de sua pátria, assim como não se coloca para trabalhar no Brasil um juiz de um Estado se um time de sua federação enfrenta um clube de outro Estado. Isso é falta de confiança nesse profissional? Não, apenas uma precaução, uma forma de tentar mostrar ainda mais isenção, mais imparcialidade na competição.
Sendo assim, eu aprovo essa novidade na Inglaterra e creio que isso deveria ser copiado em outros lugares. Vimos neste último domingo um Choque-Rei em que os são-paulinos (mais os torcedores em redes sociais) reclamaram da escalação de Raphael Claus antes da partida porque ele supostamente é palmeirense e já prejudicou o clube em clássico anterior. Depois do jogo, vimos o Palmeiras oficialmente protestar contra Claus por ter feito uma arbitragem “desastrosa”. Eu achei boa a atuação daquele que é tido como o melhor árbitro brasileiro na atualidade. Nos lances capitais, acabou acertando, e olha que houve no duelo no Allianz Parque vários lances polêmicos e interpretativos. Rafinha, capitão são-paulino, saiu revoltado de um Choque-Rei alertando que Claus é palmeirense. Há quem veja a presença dele nas finais do Campeonato Paulista nos últimos três anos (tricampeonato do Palmeiras) como um prêmio pela sua competência, mas alguém pode ver nisso também algo benéfico para o time alviverde, se é que ele torce mesmo pelo Verdão. Eu entendo as duas formas de pensamento.