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Pedro Henrique Alves: O pior inimigo do progressismo: a realidade

“A realidade é o ponto de partida básico dos sãos”. Esse é um lembrete que coloquei em minha área de trabalho, no meu computador profissional. Com certeza estou muito longe de uma excelência em estudos de humanidade, mas já não sou uma criança nesse quesito, e se pudesse eleger o problema fundamental no campo político dos séculos 19, 20 e 21, seria o afastamento consciente da realidade mais elementar. De Raymond Aron a Eric Voegelin, de Thomas Sowell a José Ortega Y Gasset, todos eles, em algum nível, entenderam que as ideologias modernas, em especial aquelas derivadas do liberalismo cultural, à esquerda, tendiam a se afastar da realidade com a promessa de refazê-la segundo uma agenda.

Você deve estar pensando: “Ok, a ficção leva ao autoengano, mas um pouco de utopia política não faz mal a ninguém.” É justamente aí onde está o problema: a utopia na política leva à ilusão que, per se, é o próprio afastamento da realidade; a ilusão leva — cedo ou tarde — à busca de meios torpes para concretização da promessa ilusória; e tais meios torpes, por fim, não se importam com sacrificados e denúncias deixadas pelo caminho no processo. Temos aí então um receituário para horrores políticos. Quando não há fundamento na realidade, a narrativa e a própria ficção criada importam mais do que qualquer indicativo de devaneio imbecil; seja por orgulho ou por encantamento incurável, o adepto da fábula tentará distorcer estatísticas, percepções de terceiros, a obviedade mais latente, para justificar sua visão. Isso é, de muitas formas, o mal político de nossa era.

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É bem verdade que há um germe desse mal no mais longínquo tronco do liberalismo histórico — ele passa pela crença quase cega no poder da razão como único meio de análise da realidade, até perpassar o próprio romantismo filosófico e sua ideia de uma sociedade livre e idílica. No fundo esse movimento perpetua a crença em uma sociedade de homens uniformemente conscientes de suas natureza e condição de dignidade, postula que a liberdade e a igualdade sociais são bens universais, sem demandar nada além do que essa mesma afirmação. Segundo o livro The Liberal Mind, de Kenneth Minogue, o liberalismo sempre se fez numa espécie de crença universalista que pregava uma ideologia da liberdade e da cumplicidade humana. No entanto, somente afirmações não sustentam civilizações: há de existir práticas e tradições como esteios para esse edifício, e aí jaz o problema do liberalismo ideológico.

Eu sou adepto de muitas teses do liberalismo clássico, da liberdade de consciência, de crença e de expressão, da dignidade universal do homem, mas me afasto de utopias e, por isso, recaio no que hoje chamamos de conservadorismo. O conservadorismo, de raiz burkeana, aposta numa ideia de liberalismo moroso, que traz atualizações de percepção social e prática política; não, todavia, como um movimento de revolução, mas, sim, como reforma. O conservador acredita que faz mais sentido trocar o telhado de uma casa, sem precisar demolir a boa estrutura que sustenta tudo, do que retirar o fundamento para testar uma ideia nova de construção que, muito provavelmente, acabará com telhados e estruturas novas no chão — a França que nos diga.

A disposição conservadora é adaptativa e inteligente, ela pega o que é bom do liberalismo e o integra em seu prisma de ações e ideias. A liberdade de mercado é um exemplo disso. No livro O Movimento Intelectual Conservador da América, o autor George H. Nash nos mostra como o conservadorismo norte-americano abraçou teses liberais de muito bom grado e hoje defende com igual furor tais princípios, muitas vezes sendo mais fiel a esses valores do que muitos autointitulados “liberais”. Hoje, nos EUA, quem defende plenamente a liberdade de expressão, a liberdade de crença, a liberdade econômica: os “liberals” democratas ou os “conservatives” republicanos?

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O Movimento Intelectual Conservador da América , de George H. Nash; e The Liberal Mind, de Kenneth Minogue | Fotos: Reprodução

Mas, como eu vejo a evolução do liberalismo num todo? Pois bem, alguns aqui hão de me criticar, mas já adianto que minha leitura não se afasta da mensagem central de filósofos políticos como Voegelin, Ortega Y Gasset, Julian Marias e Isaiah Berlin, isto é, o erro fundamental do liberalismo é seu grau de utopismo ideológico. O afastamento, consciente ou não, da realidade analisada, criando uma agenda ao invés de um plano de exploração, abandonando a descrição em favor de proposições, adquirindo, por vezes, uma linguagem revolucionária em vez de apostar numa reforma expansiva dos modelos testados de política.

Hoje há um amadurecimento real dos ditos “liberais clássicos”. Os adeptos desse liberalismo prudente se afastam das revoluções culturais e políticas, entendendo que essa linguagem e propostas foram justamente o que fez surgir a dita “esquerda socialista” como apêndice do próprio movimento liberal dos séculos 18 e 19. O erro do liberalismo é, assim, acreditar, de forma profunda e arraigada, que a realidade pode ser moldada segundo uma planificação intelectual, uma agenda, uma ideologia reducionista. É visível que o identitarismo e o estatismo, pintados de “bem-estar social”, estão levando sob enxurradas os ditos “liberais culturais” — conhecidos hoje como progressistas — para o campo da esquerda, fazendo com que liberais clássicos e conservadores se unam pragmaticamente em torno de uma ideia política de mundo, principalmente em defesa da própria realidade perceptível.

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O que afasta os liberais e os conservadores dos ditos “progressistas”, num nível psicológico mais profundo, é, por fim, a crença de que a realidade possa ou não ser modificada segundo os desígnios políticos de grupos ideológicos. Fica cada vez mais claro que a dita “direita” defende uma percepção cética e consciente da realidade, uma univocidade intransponível que está além dos poderes de editor de qualquer um; para os progressistas, por sua vez, a realidade é um construto social, moldável segundo a pressão política de momento. Do gênero ao meio ambiente, a narrativa se sobrepõe aos dados e aos fatos. Dessa maneira, o maior inimigo da esquerda é a realidade, a mesma realidade que é hoje o maior triunfo do liberal-conservadorismo. Foi assim que o mundo moderno se dividiu entre defensores da realidade e das utopistas sem pudor.

Leia também: O declínio da agenda woke, reportagem publicada na Edição 239 da Revista Oeste

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