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Podem os Estados Unidos superar o bipartidarismo?

Bernardo Santoro*

O sistema político dos Estados Unidos, embora adornado com a retórica da liberdade e da pluralidade, é estruturado de modo a restringir a competição real por poder. A alternância entre Democratas e Republicanos não é fruto de um duopólio cultural espontâneo, mas consequência direta do modelo eleitoral distrital majoritário simples, o conhecido first-past-the-post (FPTP).

Com o anúncio da criação do America Party pelo empresário Elon Musk, a pergunta que se impõe neste cenário é teórica, mas urgente: os EUA estão estruturalmente condenados ao bipartidarismo ou estamos diante do início de um novo ciclo de reorganização partidária, como já ocorreu em momentos críticos da história norte-americana?

Elon Musk: um ano de grandes acertos e patrimônio de quase meio trilhão de dólares | Foto: Reprodução/Twitter/XElon Musk: um ano de grandes acertos e patrimônio de quase meio trilhão de dólares | Foto: Reprodução/Twitter/X
O empresário Elon Musk anunciou o interesse em criar mais um partido político nos EUA | Foto: Reprodução/X

O mecanismo do FPTP: a armadilha do voto útil

No sistema FPTP, cada distrito elege um único representante, e vence quem tiver mais votos, ainda que com minoria absoluta. Não há segundo turno. Essa simplicidade tem um efeito profundo: o voto útil se impõe. O eleitor tende a votar não em quem prefere, mas naquele que tem chances reais de derrotar o candidato que mais teme.

Esse comportamento estratégico consolida o que Maurice Duverger chamou de “lei sociológica” dos sistemas eleitorais: o FPTP naturalmente gera bipartidarismo. Minorias políticas são punidas com a invisibilidade e a geografia eleitoral substitui a vontade nacional.

Essa percepção não é irracional: ela é moldada pela própria mecânica do sistema. O FPTP favorece partidos com concentração distrital, e não com apoio nacional pulverizado. A consequência é um eleitorado majoritariamente independente, mas pragmaticamente prisioneiro dos dois polos dominantes.

Com isso, partidos norte-americanos como os Libertários, os Verdes ou qualquer força emergente sofrem com:

  1. barreiras legais de acesso às urnas;
  2. ausência de representação proporcional;
  3. falta de financiamento e exclusão dos debates nacionais; e
  4. acima de tudo, a percepção de que votar neles é desperdiçar o voto.
Presidente dos EUA, Donald Trump | Foto: Reprodução/FlickrPresidente dos EUA, Donald Trump | Foto: Reprodução/Flickr
Presidente dos EUA, Donald Trump. Ele integra o Partido Republicano | Foto: Reprodução/Flickr

Como romper a barreira do bipartidarismo

Superar o bipartidarismo num sistema como o norte-americano requer mais do que vontade. Requer estratégia. Há cinco caminhos plausíveis, cada um com sua própria lógica e riscos.

O primeiro é a infiltração de uma nova força dentro de um dos partidos existentes. O presidente dos EUA, Donald Trump, já percorreu esse caminho com sucesso. Em vez de fundar um novo partido, infiltrou-se no Partido Republicano e o transformou radicalmente. A lógica populista rompeu o consenso conservador tradicional. O partido não colapsou, sendo, na verdade, reconstruído sob nova direção. Bernie Sanders tentou com os Democratas recentemente, mas perdeu a tentativa de radicalização à esquerda do partido com a vitória de Hillary Clinton nas prévias de 2016, quando todo o establishment democrata cerrou fileiras para impedir a tomada partidária.

O segundo é o regionalismo estratégico. Em sistemas FPTP, o segredo não é ter votos, mas tê-los bem concentrados. Partidos regionais como o Bloc Québécois (Canadá) ou o SNP (Escócia) conseguem ser relevantes mesmo com pouca expressão nacional. Um partido novo nos EUA pode mirar distritos com maior densidade de eleitores independentes, libertários moderados ou rejeição bipartidária em vez de buscar amplitude imediata, mas teria de ter discurso localizado e com foco em características étnicas, raciais ou com algum outro traço sociológico muito distinto, o que não é o caso do America Party.

O terceiro é a reforma eleitoral. O voto preferencial (ranked-choice), já em vigor no Maine e no Alasca, permite que o eleitor ordene suas preferências, reduzindo o “efeito spoiler”. Esse modelo não destrói o bipartidarismo, mas liberta o voto, tornando viáveis candidaturas de fora. A adoção nacional seria um divisor de águas, mas enfrenta forte resistência institucional. É o que os Liberal-Democratas tentam fazer há anos na Inglaterra, propondo a substituição do FPTP pelo voto proporcional de lista, mas nunca encontraram votos suficientes no Parlamento, pois os partidos mais poderosos bloqueiam essa mudança legislativa.

O quarto caminho é a tentativa clássica de construção de uma “terceira via equidistante”, que se coloca deliberadamente fora do eixo esquerda-direita tradicional, buscando capturar eleitores moderados, independentes e politicamente cansados da polarização. Trata-se de uma estratégia já testada e frequentemente frustrada em democracias com sistema FPTP. Os Liberal-Democratas no Reino Unido, o Partido Libertário nos EUA e o New Democratic Party no Canadá investiram por décadas nesse modelo. No entanto, a estrutura do sistema os empurra para a irrelevância institucional. Como não se apresentam como substitutos diretos de nenhum dos grandes partidos, sofrem duplamente com o voto útil: são vistos como fracos demais para vencer e ambíguos demais para gerar paixão política.

O próprio caso dos Liberal-Democratas ilustra bem esse dilema: mesmo com votações populares expressivas em algumas eleições nacionais (chegaram a obter 23% dos votos em 2010), raramente traduziram esse apoio em representação parlamentar proporcional, ficando restritos a poucos distritos onde conseguiram construir redutos históricos. Isso evidencia a inerente hostilidade do sistema majoritário ao projeto centrista genérico, que não mobiliza nichos intensos nem se beneficia da concentração geográfica do voto.

Pelo que se observa até aqui, o America Party de Elon Musk parece caminhar nessa direção, com uma proposta que busca se colocar “acima dos dois lados”. No entanto, se escolher esse posicionamento equidistante, sem disputar diretamente a base de um dos partidos existentes, tende a cair na mesma armadilha histórica que esvaziou outras iniciativas semelhantes. O modelo norte-americano exige confronto direto por espaço político definido. Ser “meio-termo” num sistema binário raramente gera tração e quase nunca poder real.

O quinto caminho é o mais subestimado e historicamente poderoso: a substituição direta de um dos grandes partidos. Ao contrário da criação de uma “terceira via” genérica, trata-se de disputar o mesmo nicho ideológico e a mesma base social de um dos partidos dominantes, com maior autenticidade, energia e clareza de projeto.

Esse fenômeno já ocorreu. No Reino Unido, o Partido Trabalhista substituiu o Partido Liberal no início do século 20 como representante das massas trabalhadoras, em resposta às transformações sociais da Revolução Industrial e à incapacidade liberal de lidar com o conflito de classes da época. O Partido Liberal entrou em colapso, e o Labour emergiu como um dos dois pilares do novo sistema.

Hoje, os Liberal-Democratas e o Reform UK tentam repetir esse processo: os primeiros disputando o eleitorado progressista frustrado com o Labour; os segundos, os eleitores nacionalistas decepcionados com os Tories. Ambos tentam ser o novo partido de confiança de um velho grupo social.

Nos EUA, o sistema bipartidário nunca foi imutável. Ao longo do tempo, os partidos dominantes mudaram e, em certos momentos, foram substituídos. Os Federalistas deram lugar aos Democratas-Republicanos. Mais tarde, os Whigs desapareceram e foram substituídos pelos Republicanos. Os Democratas também mudaram radicalmente: de defensores da escravidão, tornaram-se o partido do New Deal, dos direitos civis e da esquerda urbana moderna.

A teoria dos realinhamentos críticos, proposta por autores como Walter Dean Burnham, sustenta que o bipartidarismo americano se reorganiza ciclicamente, com base em grandes transformações econômicas, sociais ou tecnológicas. Cada ciclo produz novas coalizões e, às vezes, novos partidos. Talvez estejamos novamente no limiar de um desses momentos.

Nesse cenário, o America Party de Elon Musk pode representar uma tentativa de substituição. Se conseguir ocupar com clareza o espaço de centro-direita racional, hoje sem representação coesa, poderá atrair eleitores frustrados tanto com o progressismo identitário democrata quanto com o populismo nacionalista republicano. Se o America Party conseguir isso, provavelmente surgirá um novo partido antagônico e os tradicionais Republicanos e Democratas serão substituídos por completo.

A substituição partidária, portanto, não é um sonho utópico e sim um fenômeno histórico. É construída pela persistência em ocupar um vácuo com coerência, até que a estrutura ceda, o que é raro, mas acontece.

O presidente dos EUA, Joe Biden, teceu comentários no Museu Nacional da Escravidão em Luanda, Angola - 3/12/2024 | Foto: Elizabeth Frantz/ReutersO presidente dos EUA, Joe Biden, teceu comentários no Museu Nacional da Escravidão em Luanda, Angola - 3/12/2024 | Foto: Elizabeth Frantz/Reuters
Ex-presidente norte-americano, Joe Biden integra o Partido Democrata | Foto: Elizabeth Frantz/Reuters

Conclusão: por um projeto claro e objetivo definido

O sistema eleitoral norte-americano foi projetado para garantir estabilidade e tem sido eficaz nisso. Mas estabilidade demais pode significar rigidez diante da mudança. Quando o sistema se torna impermeável à inovação política, ele perde legitimidade e gera frustração.

A superação do bipartidarismo nos EUA não acontecerá por acidente. Ela exigirá projeto e estratégia clara. Embora as barreiras sejam altas, os precedentes históricos mostram que, quando a sociedade muda profundamente, o sistema partidário também muda, mesmo quando tenta resistir.

Pode o America Party vir a se tornar um grande partido norte-americano? Sim, mas apenas se não for uma “terceira via” genérica e passar a disputar diretamente a base de um dos dois partidos dominantes. O sistema FPTP só permite a ascensão de novas forças quando elas ocupam com clareza um vácuo político real e se consolidam como substitutas, não como alternativas moderadas.

Se o America Party trilhar o caminho equidistante, tende a repetir os fracassos de experiências semelhantes. Mas, caso se posicione com identidade clara, base social definida e estratégia de longo prazo, pode marcar o início de um novo ciclo partidário nos EUA, tal como já ocorreu no passado.


*Cientista político, advogado, mestre e doutorando em Direito. Conselheiro do Instituto Liberal e sócio do escritório SMBM Advogados.

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