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Há exatos vinte anos, em novembro de 2005, o futebol brasileiro testemunhou a primeira punição de um caso de racismo. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) puniu o Juventude devido a imitações de macaco direcionadas ao volante Tinga durante um clássico com o Internacional pela 33ª rodada do Brasileirão.

Alicio Pena Júnior era o árbitro daquela partida e relembrou, em entrevista exclusiva à ESPN, o lamentável episódio.

“Na arquibancada, eles estavam fazendo como os argentinos em jogos de Libertadores, imitando realmente um macaco. Toda vez que o Tinga tocava na bola, a torcida fazia esse barulho’’, lembrou.

Na época, o então presidente do Juventude, Walter Dal Zotto, chegou a dizer que foi um “episódio isolado, de uma meia dúzia de torcedores”. Mas não é isso que Alicio se lembra.

“Não foi um fato isolado, foi grande parte da geral, das populares do Alfredo Jaconi, se manifestando em uníssono. Foi muito perceptível, tão perceptível que constrangeu a mim, ao Tinga e às demais pessoas no campo de jogo’’, contou.

O árbitro chegou a paralisar a partida e chamar o delegado, afirmando que só retomaria quando os gritos cessassem. O pedido passou no sistema de som, mas sem melhora.

“A torcida continuou e aí a gente paralisou a partida, ficou mais algum tempo parado e aí novamente foi veiculado no sistema de som. Algumas manifestações aconteceram, mesmo com todas essas medidas que a gente tomou, até o final da partida”, contou o hoje inspetor de arbitragem da CBF.

Alicio relatou o ocorrido na súmula e, a partir disso, o caso chegou ao STJD. O resultado foi uma sentença histórica: o Juventude foi punido com a perda de dois mandos de campo e com uma multa de R$ 200 mil. O valor corrigido para novembro de 2025 é de R$ 708.436,48, segundo calculadora do Banco do Brasil.

Marcus Basílio, relator do caso Tinga, chegou a dizer após o julgamento que a punição era exemplar para evitar que a situação se tornasse incontrolável. Justamente o contrário do que aconteceu.

Desde 2014, quando começou a curadoria de dados do STJD, já foram 53 casos de racismo concluídos: 37 foram punidos e 16 absolvidos. Há ainda três outros processos sem resolução, que seguem tramitando no tribunal. Porém, são apenas uma fatia da realidade. Segundo o último relatório do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, foram 162 casos de racismo com relação ao futebol brasileiro apenas em 2023.

Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório, comentou a respeito desse descompasso entre o que é julgado e o que de fato acontece.

“O sentimento de impunidade é causado pela falta de denúncias. Muitas vezes, a gente vê que um jogador sofreu racismo, mas isso não está registrado nem na súmula, nem em um boletim de ocorrência’’, afirmou à ESPN.

O diretor ainda fez um apelo às vítimas: “A gente precisa que o jogador entenda esse papel, que é o da denúncia efetiva no caso de racismo que ele sofreu”. É a partir desse relato formal que o caso pode se encaminhar aos Tribunais de Justiça Desportiva (TJD) ou ao próprio STJD, a depender da regionalidade da competição.

Racismo e xenofobia na Série B

A complexidade, porém, é muito maior do que apenas denunciar. Em 15 de novembro, a cinco dias do Dia da Consciência Negra, o jogo entre Avaí e Remo pela 37ª rodada da Série B do Brasileirão ficou gravado por um episódio de falas racistas e xenofóbicas direcionadas à torcida do time paraense. Vídeos registram o momento em que torcedores do Avaí gritam coisas como “Olha a sua cor” e “Vai de jegue?”.

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2:28

Muita briga! Torcedores de Avaí e Remo se envolvem em grande confusão

Avaí e Remo se enfrentam pela 37ª rodada da Série B do Brasileirão

Abraão Jaques era um dos torcedores do Remo presentes no jogo. O paraense estava bem próximo à grade que separava as torcidas e ouviu com clareza tudo que foi gritado ao longo da partida – as manifestações não tinham um alvo específico, mas, sim, todos os paraenses presentes. “Aquilo ocorreu durante todo o jogo. Não foi só naquele momento. Começou por volta dos dez minutos do primeiro tempo e se decorreu até o segundo”, contou o advogado em entrevista à ESPN.

“A gente puxava o celular para gravar e ela disfarçava. A gente falava com a segurança tipo ‘olha o que ela está falando, toma uma atitude’, mas ali tinha muita segurança privada, que não estava querendo se envolver”, relatou Abraão.

O torcedor admitiu que não procurou as autoridades para formalizar uma denúncia porque estava em viagem com sua família e não queria estragar o passeio. Ele torce, porém, para que o Avaí seja punido pelo episódio.

“Tem que sofrer punições sim, porque, como torcedora, ela ver que vai prejudicar uma massa de uma torcida e acho que vai pensar duas vezes antes de fazer. Eu concordo em perder mando de campo, eu concordo que ela não deve não frequentar mais o estádio…’’, disse.

Contudo, a situação é tão recente que nem teve tempo de chegar ao STJD para ser julgada em âmbito esportivo (o Ministério Público de Santa Catarina já cuida do caso), mas um ponto relevante em relação aos que chegam é justamente a punição. Nos últimos doze anos, elas passaram por multas de R$ 2 mil para clubes e de R$ 35 mil para jogadores, suspensões, perdas de pontos, portões fechados… Muitas variáveis.

O subprocurador-geral do STJD, Ronald Barbosa, explicou à ESPN a respeito da diferença de penas.

“As punições mudam em razão da gravidade. E o que calcula a gravidade? Aí tem um componente subjetivo. É o que a Comissão ou o Pleno vai entender como grave naquele momento’’, começou por afirmar.

“Se dissesse que a discriminação seria punida com a mesma pena em todas as hipóteses, eu tenho certeza que isso traria também uma insatisfação muito grande, porque existe aquilo que se considera como relevante em âmbito normativo. Então, conforme você aumenta a relevância daquilo que você fez, atinge um maior número de pessoas, cria uma complexidade. Acaba tendo uma pena maior’’, completou.

O aspecto financeiro do clube que está sendo julgado também é levado em consideração no que diz em relação à dosimetria, especificamente no setor de multas. Porém, recentemente, o Goiatuba, da Série D, foi punido em R$ 60 mil por injúria racial contra o atleta Renan Luís, à época da Inter de Limeira. Ainda cabe recurso. O valor aplicado pela Terceira Comissão Disciplinar é o maior que o STJD já impôs desde 2014, tendo sido utilizado em apenas uma outra vez (sobre o Esportivo Bento Gonçalves, em 2014, com ainda perda de 3 pontos no Campeonato Gaúcho por amassarem o carro do árbitro do jogo contra o Veranópolis e deixar bananas sobre o veículo).

O artigo em vigor para tratar casos de discriminação é o 243G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). Ele prevê multas de R$ 100 a R$ 100 mil. Nem perto do valor imposto ao Juventude em 2005. Marcelo, do Observatório, avaliou que o caso Tinga foi importante pois significou um avanço no combate ao racismo e, consequentemente, no âmbito das punições. “Mas a gente não conseguiu trabalhar da mesma forma” nesse segundo critério e manter a rigidez.

Ainda assim, vale pontuar que 2005 era uma outra época. Não havia um artigo específico para racismo, o que só veio a acontecer em 2009, com a reforma do CBJD. Por isso, o Juventude foi enquadrado no artigo 213, que impõe multa de até R$ 500 mil para quem deixar de tomar providências para prevenir desordens em seu estádio.

“Em âmbito normativo, aquela base para condenação e dosimetria não se manteve. Esse caso é muito importante principalmente do ponto de vista histórico. Do ponto de vista normativo, as regras utilizadas ali não existem hoje. O que tem hoje está em outro formato”, avaliou o Subprocurador-geral do STJD.

Independentemente de quais rotas foram, são e serão utilizadas para punir o racismo no futebol brasileiro, o objetivo, segundo Marcelo Carvalho, tem que ser um só.

“A gente tem que fazer com que esses indivíduos tenham medo de estar em um estádio de futebol. A gente precisa identifica-los e puni-los. A gente precisa punir o clube de coração dessas pessoas, com certeza elas vão pensar duas vezes antes de fazer qualquer ato que leve o clube delas a ser punido. E terceiro, enquanto sociedade, a gente não pode mais assistir um caso de racismo na arquibancada de forma indiferente ou dar risada. A gente precisa identificar, chamar as autoridades, chamar o segurança no estádio, chamar a polícia, prender essa pessoa, ir para a Justiça, exigir que essa pessoa não volte ao estádio. A partir do momento que o torcedor perceber que indivíduos racistas não são bem-vindos nos estádios e inclusive vão ser presos, aquela pessoa que tem tendência a cometer atos de racismo não vai para o estádio. Ou se for, ela vai se policiar. Mas enquanto a gente viver nessa sensação de impunidade, outros racistas vão para o estádio para cometer racismo. A gente vai fazer com que esse estádio de futebol não seja esse lugar propenso para eles. Eles precisam se sentir fora desse espaço”, finalizou.

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