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Sanções internacionais são reconhecimento de soberania — Bernardo Santoro

A doutrina clássica da ciência política ensina que os elementos constitutivos de um Estado-nação são quatro: povo, território, governo e soberania. Essa concepção remonta a pensadores como Jean Bodin, um dos primeiros a sistematizar o conceito de soberania no século XVI, e foi consolidada por teóricos modernos como Jellinek, que definiu o Estado como “a corporação de um povo assentado sobre um território próprio, dotada de um poder de mando originário”; e esse poder de mando é justamente a soberania.

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Soberania, portanto, é a capacidade de um Estado exercer autoridade suprema dentro de suas fronteiras, sem subordinação a qualquer outro poder externo. É o que diferencia uma nação independente de uma colônia ou de um regime fantoche. Essa soberania pode se expressar tanto no plano interno, como o poder de legislar, tributar e julgar, quanto no plano externo, na capacidade de se autodeterminar frente a outras nações.

Nesse contexto, as sanções internacionais acabam sendo um curioso paradoxo: embora sejam medidas punitivas, aplicadas com o intuito de pressionar ou punir governos por ações consideradas inaceitáveis pela comunidade internacional ou por potências específicas, como os Estados Unidos, elas são também, implicitamente, um reconhecimento de que o país sancionado é soberano. Afinal, só se pune quem tem autonomia para decidir.

Sanções reconhecem a autoridade do outro

Sanções internacionais são instrumentos de política externa usados para afetar econômica, diplomática ou militarmente um país considerado “desobediente” à ordem ou aos interesses das potências dominantes. Podem se traduzir em embargos comerciais, congelamento de ativos, suspensão de tratados, proibição de voos, exclusão de fóruns internacionais, entre outras medidas.

Neste domingo, Trump afirmou que já assinou as cartas que notificam os governos estrangeiros | Foto: Reprodução/Wikimedia CommonsNeste domingo, Trump afirmou que já assinou as cartas que notificam os governos estrangeiros | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
Donald Trump, presidente dos EUA | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Mas, por trás da punição, há o reconhecimento de que o Estado-alvo é responsável por seus atos, tem governo próprio e age com autonomia. Se não fosse soberano, não seria sancionado, mas ocupado, substituído ou ignorado. É a diferença entre repreender um igual e subjugar um vassalo. É um reconhecimento tácito de soberania.

Quando a soberania é negada

Isso não significa que as potências sempre se contenham. Existem momentos em que a soberania é abertamente violada. Foi o que ocorreu em 1989, quando os EUA invadiram o Panamá para capturar Manuel Noriega, então presidente do país e aliado incômodo que se tornara inimigo. A operação militar “Just Cause” ignorou completamente a autoridade interna panamenha, depôs o governo e levou Noriega a julgamento em solo americano.

Outro exemplo evidente foi a invasão do Iraque em 2003, sob o pretexto de armas de destruição em massa que jamais foram encontradas. A soberania iraquiana foi obliterada e o país mergulhou em anos de caos. Mais recentemente, a guerra da Ucrânia tem protagonismo da Rússia, potência invasora, que nega a soberania de partes do território ucraniano e alega que o país invadido não tem direito de aderir à Otan ou decidir seus próprios rumos.

A diferença entre sanções e invasões é, portanto, crucial. Quando há sanção, há crítica, mas também há reconhecimento. Quando há invasão, há negação. Por isso, a escolha das sanções é, paradoxalmente, um gesto civilizatório: indica que ainda se acredita na legitimidade do outro como Estado, ainda que se busque sua rendição econômica ou política.

O caso Brasil–Estados Unidos

No atual embate entre o governo dos Estados Unidos e o governo Lula, marcado pela aproximação do Brasil com regimes autocráticos como China, Rússia e Irã, além da retórica de desdolarização e da crítica aberta à política externa americana, as sanções que começam a ser ventiladas ou aplicadas (especialmente no campo comercial e tecnológico) são sinal claro de incômodo. Mas também são um recado implícito: “Vocês ainda são uma democracia soberana, mas estão abusando da confiança.”

Leia também: O espelho partido: Trump, tarifas e o custo do consórcio, artigo de Flávio Gordon publicado na Edição 277 da Revista Oeste

Não se está (ainda) diante de uma ruptura diplomática ou de uma tentativa de interferência direta. Os EUA não estão financiando oposição armada, como foi o caso dos grupos mais moderados contrários a Bashar al-Assad na Síria, nem reconhecendo governos paralelos, como fizeram com Guaidó na Venezuela, ou estimulando revoltas, como na Primavera Árabe ou na própria Ucrânia na Revolução de Maidan de 2013 a 2014. Estão, sim, impondo restrições, o que pode gerar, ocasionalmente, um desconforto natural no exercício da soberania de um país.

Porque toda soberania, na prática, é relativa. Um país pobre, dependente comercialmente, diplomático ou militarmente subordinado, pode até ter soberania formal, mas vive sob constante chantagem. A soberania não é um escudo absoluto; é uma construção política e econômica, que precisa ser cultivada, respeitada internamente e defendida externamente.

A verdadeira erosão da soberania: o consórcio PT-STF

Enquanto o governo brasileiro brada contra supostas agressões à sua soberania por parte dos Estados Unidos, a verdadeira erosão dessa soberania não vem de fora, vem de dentro. Porque a base da soberania interna não é o discurso nem a retórica nacionalista e sim a vontade popular, como defendem contratualistas, sejam os mais individualistas, como Locke, ou os mais coletivistas, como Rousseau. Essa vontade popular se traduz em um pacto fundamental que é a Constituição, e as instituições políticas e jurídicas que dela nascem, como a separação de Poderes, o devido processo legal, a imparcialidade da Justiça e a legalidade das decisões estatais.

O consórcio Lula-STF; governo brasileiro flerta com a ditadura, sugere artigo da Edição 276 da Revista OesteO consórcio Lula-STF; governo brasileiro flerta com a ditadura, sugere artigo da Edição 276 da Revista Oeste
O consórcio Lula-STF | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Bizarramente, nas redes sociais oficiais do governo brasileiro, o petismo constrói, na forma de meme de um gato em um corpo musculoso, a narrativa de que as instituições que geram a soberania popular não são as aqui citadas, frutos de uma construção multissecular, mas sim programas de governo do PT como o Bolsa Família, o “Brasil Sorridente” ou o “Minha Casa, Minha Vida”, o que apenas confirma ter esse partido uma visão política eleitoreira, patrimonialista e populista na pior versão do termo.

Paralelamente a essa desconstrução mental em forma de marketing, o que se vê hoje no Brasil é a formação de um consórcio informal entre esse mesmo Partido dos Trabalhadores e o Supremo Tribunal Federal, que vem promovendo uma erosão sistemática dos verdadeiros fundamentos dessa soberania interna e das reais instituições dela decorrentes.

Os inquéritos das fake news e do suposto golpe de 8 de janeiro, conduzidos sem os devidos limites constitucionais, são exemplos gritantes desse colapso institucional. Ministros que acumulam funções de vítima, investigador, acusador e juiz; réus que são condenados sem provas objetivas; prisões que se prolongam por tempo indefinido sob pretextos frágeis… tudo isso destrói o pacto constitucional e nossa soberania interna pelo esvaziamento da sua legitimidade.

A corrupção praticada por esse consórcio passa a ser mais grave que uma corrupção financeira, visto ser essa transitória, mas a corrupção do próprio fundamento da soberania que diz defender, essa com caráter muito mais permanente.

Conclusão: é preciso restaurar a soberania

O Brasil precisa urgentemente restaurar sua soberania. Não apenas no plano externo, mantendo uma política internacional altiva e independente, mas principalmente no plano interno, reconstruindo o Estado de Direito e a confiança nas instituições republicanas com base na vontade popular solidificada na Constituição e nos direitos nela prescritos como pacto social fundamental.

Leia também: A conta chegou, artigo de Silvio Navarro publicado na Edição 277 da Revista Oeste

Sanções de potências estrangeiras são incômodas, mas previsíveis, e não deixam de ser um reconhecimento de soberania externa. Mais perigosas são as sanções internas, invisíveis, que governos e tribunais impõem à própria Constituição sob o pretexto de proteger a democracia e destruindo-a no processo.

A soberania não se grita em palanque. Ela se exerce com limites, com legalidade, com instituições fortes e independentes. Essa é a verdadeira lição que o Brasil precisa reaprender, com urgência.

*Bernardo Santoro é cientista político e advogado, mestre e doutorando em Direito, conselheiro do Instituto Liberal e sócio do escritório SMBM Advogados.

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