“O Brasil tem só dois amigos no Hemisfério: o Chile no Sul e os Estados Unidos no Norte” — José Maria da Silva Paranhos (1841-1912), Barão do Rio Branco
A Seção 301 da Lei de Comércio dos Estados Unidos, criada em 1974, consolidou-se como um dos principais mecanismos de pressão comercial adotados por Washington contra países acusados de adotar práticas desleais. Na quarta-feira 9, o presidente Donald Trump voltou a acionar o dispositivo ao determinar a abertura de uma investigação contra o Brasil, sob a alegação de distorções à concorrência e prejuízos às exportações norte-americanas.
O dispositivo autoriza o Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) a investigar práticas comerciais estrangeiras consideradas desleais ou discriminatórias. A investigação pode começar pelo próprio USTR ou a partir de petições de entidades empresariais norte-americanas.
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O processo inclui uma etapa de consultas com o país alvo, seguida da apuração dos fatos. O prazo para conclusão é de até 12 meses. Ao final, o USTR apresenta um relatório ao presidente dos EUA, que pode impor sanções unilaterais, como tarifas adicionais ou restrições comerciais.
Em alguns casos, como nas investigações sobre tributos digitais encerradas em 2021, o governo norte-americano optou por não aplicar penalidades, o que evidencia o uso do mecanismo também como instrumento de dissuasão política.
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Brasil já foi investigado pela Seção 301
O Brasil já foi alvo desse instrumento em diversas ocasiões, especialmente entre as décadas de 1970 e 2000, com foco em setores como calçados, informática, produtos farmacêuticos e propriedade intelectual. Em 1976, por exemplo, os EUA ameaçaram sobretaxar bolsas de couro e óleo de soja brasileiros. O impasse só foi contornado mediante um acordo que previa ajustes nos incentivos fiscais à exportação por parte do Brasil.
Nos anos 1980, os principais confrontos comerciais entre Brasil e EUA se concentraram na reserva de mercado da informática e na ausência de patentes farmacêuticas. A Lei da Informática brasileira foi formalmente investigada em 1985 por decisão do presidente Ronald Reagan, sob a alegação de prejuízos às empresas norte-americanas. Apesar da tensão diplomática, o Brasil evitou sanções diretas ao sinalizar flexibilizações que resultariam, mais tarde, na reforma da legislação.


O setor farmacêutico também foi alvo. Desde 1945, o Brasil não reconhecia patentes para medicamentos — política revertida apenas na década de 1990. Pressionado por entidades como a Pharmaceutical Manufacturers Association (PMA), o governo dos EUA impôs, em 1988, sobretaxas de até 100% sobre produtos brasileiros como papel e químicos. A crise levou à aprovação da Lei de Propriedade Industrial (LPI), que passou a conceder patentes para medicamentos. Com isso, os EUA suspenderam as sanções.
O diplomata aposentado Régis Arslanian, que participou diretamente das negociações da época, relatou a Oeste que o Brasil enfrentou sanções ao resistir a mudanças, mas que a aprovação da Lei de Propriedade Industrial levou ao fim das punições. “O [José] Sarney conseguiu convencer o Congresso a passar a lei de propriedade industrial (…) que concedeu patentes para farmacêuticos”, recorda. “Com isso, os EUA levantaram as sanções comerciais contra o Brasil.”
A nova ofensiva de Trump
Em julho, Trump reativou a Seção 301 contra o Brasil. A medida incluiu a imposição de uma tarifa de 50% sobre exportações brasileiras e a abertura de uma nova investigação por práticas comerciais consideradas desleais, com foco em censura judicial e restrições à liberdade econômica.
O relatório oficial do USTR, divulgado em na última terça-feira, 15, denuncia uma série de preocupações: políticas digitais que limitariam a liberdade de expressão, ordens judiciais secretas contra críticos do governo, barreiras à transferência de dados pessoais, tratamento tarifário preferencial a parceiros como México e Índia, falhas na proteção à propriedade intelectual, obstáculos às exportações norte-americanas de etanol, e problemas relacionados ao combate ao desmatamento e à corrupção. Segundo o USTR, as medidas brasileiras estariam “prejudicando severamente a competitividade das empresas norte-americanas”.
O governo dos EUA justificou a ação por “recorrente violação de compromissos internacionais”. O Brasil respondeu que não aceitará ingerência externa e que eventuais sanções serão respondidas com base na Lei de Reciprocidade Econômica. Arslanian avalia, no entanto, que “a Seção 301 não tem objetivos políticos” e sua aplicação atual representa “um contrassenso”.
O risco da “Special 301”
A partir de 1988, a legislação norte-americana ampliou os poderes do Escritório do Representante de Comércio (USTR) com a criação do dispositivo conhecido como “Special 301”. Ele determinava a identificação automática de países e práticas consideradas obstáculos ao comércio dos EUA, com previsão de medidas unilaterais. Desde sua promulgação, o Brasil passou a figurar nas listas de risco.
Décadas depois, o tema das patentes volta ao centro do debate. Diante da nova tarifa de 50% anunciada por Trump, o governo Lula avalia responder com base na Lei de Reciprocidade Econômica, inclusive com a suspensão de patentes norte-americanas no Brasil. A medida, segundo Arslanian, seria altamente contraproducente: “Isso vai ser pior ainda, porque eles poderão adotar medidas adicionais de sanções contra o Brasil, sobre a base da ‘Special 301’, que é específica para propriedade intelectual.”


Arslanian lembra que o Brasil ainda figura na lista de observação da norma. Retaliações nesse campo poderiam acirrar o conflito e provocar prejuízos concretos à indústria nacional. “A nossa indústria precisa de tecnologia”, advertiu. “Patentes garantem a inovação e os investimentos externos no Brasil.”
Para o ex-diplomata, a escalada em temas sensíveis como propriedade intelectual pode desencadear sanções ainda mais severas e comprometer setores estratégicos. Ele espera que o Brasil adote uma postura diplomática cautelosa e evite confrontos diretos: “Não seria apropriado e nem corresponderia aos interesses nossos, nacionais, da nossa economia e da nossa situação política também, enfrentar o presidente Trump.”
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