Airton Vieira acordou com a luz do sol atravessando a cortina, iluminando um canto com uma faixa de poeira cintilante. Mal abrira os olhos e o quarto já lhe parecia mais exíguo que o habitual. O estômago reclamava — a gastrite lembrava-lhe que toda refeição era um risco. Ainda assim, não dispensava o café preto, sem açúcar. Mexeu o líquido devagar, observando o reflexo na xícara, como quem adia o instante em que o mundo o chamaria. Não o mundo real, que Airton desconhecia, mas o mundo filtrado pelos olhos do chefe. Sempre o chefe.
Na garagem, o carro de luxo o aguardava. O motorista conhecia cada gesto antes mesmo de Airton pensá-lo. Pelas ruas, a cidade começava a se agitar: crianças corriam, vendedores ajeitavam barracas, pedestres se esbarravam. Por detrás do vidro escuro, isolado e seguro, ele assistia a tudo com indiferença — uma indiferença que às vezes se confundia com liberdade. Mas Airton sabia: não era livre. Cada movimento seu obedecia a um ritmo imposto de cima, frenético e inevitável. A sombra do chefe pairava sobre cada pausa, cada olhar, cada gesto, por mais insignificante que fosse.
No gabinete, cumprimentou os colegas com acenos curtos. As telas brilhavam; os relatórios, empilhados, exigiam sua atenção. Vasculhava-os com precisão mecânica. A impressora emperrava, o documento atrasava, o ar-condicionado zumbia — pequenos aborrecimentos, sempre urgentes. Uma vida atribulada. Enquanto isso, longe dali, outras vidas se dobravam: empregos sumiam, famílias eram destruídas. Airton apenas executava, obediente e meticuloso, as ordens do todo-poderoso. Seu trabalho era peça de uma máquina gigantesca, cujo operador jamais aparecia — e cujos produtos, despachos e custódias, jamais seriam assunto à mesa do jantar.
+ Leia mais notícias de Política em Oeste
Naquele dia, o almoço foi rápido no escritório: sanduíche e água com gás. A maionese salgada o irritou; um colega riu alto; o tempo parecia escorrer devagar. Cada detalhe soava urgente. Havia uma vontade suprema a satisfazer. Airton sentia o peito apertado. Afrouxou a gravata para respirar melhor. Não adiantou. Sua vida parecia não lhe pertencer, e até os pequenos aborrecimentos domésticos vinham de fora.
Mais do dia de Airton Vieira
Horas depois, papéis, telas, assinaturas. O magistrado concursado, outrora orgulho da família, suspirava contido, roendo-se numa miséria existencial de dar dó. Notou que suspirava e bufava com frequência, quase automaticamente. Isso o incomodava: prezava a gentileza e o bom trato — sobretudo com os subalternos — como ideais de conduta.
Via-se como homem educado, de fala ponderada, mas, nos últimos meses, manter essa postura tornara-se penoso. Não estava aguentando. A contrição desesperada da angústia cobrava seu preço: tiques, esgares, espasmos na face. O problema era que, se a rotina claustrofóbica o sufocava, também lhe dava segurança. E Airton era um homem que primava pela segurança. “Estabilidade, estabilidade” — repetia o mantra doméstico à mulher, que lhe cobrava mais presença.
Enviou as últimas mensagens no grupo de WhatsApp e, na pressa de voltar para casa, nem corrigiu os erros de digitação. Postou emojis de risinho, tentando disfarçar o humor soturno com descontração fingida. Queria engajar os outros. Queria se engajar. Precisava acreditar que cumpria uma missão nobre, tão nobre quanto imaginava ser o seu espírito. Entrou rápido no elevador para evitar companhia. O motorista o aguardava com o ar-condicionado ligado. Assim que se acomodou no banco macio, o carro partiu silencioso. Airton cochilou. E sonhou.
Um sonho estranho
Um sonho estranho, com a avó, morta havia muitos anos. Mas sua fisionomia era outra — bruta, áspera, sem a delicadeza que a caracterizava. Os trejeitos também eram diferentes: masculinos, imperativos, opostos à docilidade habitual. No sonho, a avó segurava seu rosto, cravando-lhe os dedos ossudos nas bochechas, e dizia com firmeza:


— Você fez tudo certo, meu anjo. Você fez tudo certo.
Despertou com a freada brusca. Um motoboy avançara o sinal e quase foi atingido. O motorista conteve o xingamento. Airton não:
— Mas que filho da puta! Gente dessa laia merece morrer! — a voz lhe saiu mais alta e esganiçada do que pretendia. O motorista apenas assentiu. Airton tremia.
Passado o susto, o carro voltou a deslizar pelas avenidas noturnas. A cidade passava como filme mudo: fachadas descascadas, vultos encurvados, semáforos piscando para ninguém. Dentro, o ar refrigerado, o couro macio, o ronco grave do motor. A gastrite voltou a latejar, queimando como brasa mal apagada. Tentou pensar em nada, esvaziar a mente como quem fura um balão d’água. Mas a sombra continuava lá — um peso no ar, como cheiro de mofo que não sai nem lavando a parede.
“Você fez tudo certo, meu anjo”
Lembrou-se do sonho. “Você fez tudo certo, meu anjo” — e agora a frase soava como ordem, deboche. Apertou as mãos no colo, sentindo as unhas marcarem a pele. Quis gritar. Para que o motorista não percebesse, fechou os olhos com força, recostou a cabeça e rangeu os dentes.
Chegou em casa sem acender as luzes. A família dormia — um privilégio. Outras não pregavam o olho há meses. Largou a pasta no aparador e ficou no escuro, ouvindo o tique-taque do relógio. O som parecia vir de dentro do crânio. Inspirou fundo, mas o ar veio curto. A sombra estava ali também — no silêncio, nas paredes, na cozinha, no quarto.
Entrou no escritório doméstico e acendeu o abajur. Olhou para a mesa de vidro, com seus cantos afiados; para as canetas pontiagudas; para as estatuetas de codorna, em ferro fundido, que serviam de peso de papel. Objetos de delicadeza fria, prontos para silenciar alguém. Sentiu um calor subir pela nuca. Foi até a cozinha suando frio, abriu a torneira, encheu um copo d’água. Bebeu devagar, encarando o próprio reflexo na janela. Sorriu — não para si. Não se sabe para quem, nem por quê. Ficou parado, imóvel. As têmporas pulsavam. O corpo queria descansar. A cabeça, não. Airton ainda estava trabalhando.